segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nigéria: mais uma das Tragédias Africanas

Nelson Bacic Olic  
Um concurso de Miss Mundo que seria realizado na Nigéria, país africano com expressiva população muçulmana governado atualmente por um presidente cristão, onde há três anos em 12 dos mais de 30 estados federados, está em vigor a estrita observância da sharia (lei islâmica que julga casos considerados criminais) e uma matéria infeliz feita por uma jovem jornalista foram os ingredientes que levaram à eclosão de graves conflitos no país.
A matéria publicada pelo jornal ThisDay sobre o concurso afirmava que, se tivesse oportunidade, Maomé escolheria uma esposa entre as concorrentes. Estes fatos desencadearam confrontos de caráter religioso que deixaram um saldo de mais de duas centenas de mortos e cerca de mil feridos. Os distúrbios aconteceram não só em Abuja, a capital onde, no início de dezembro, seria realizado o concurso, como também em algumas das principais cidades dos estados do norte do país. Esse não foi o primeiro e, com certeza, não será o último conflito dessa natureza a se verificar no país.
Sem considerar a Guerra de Biafra (1967/1970) e que fez mais de 1 milhão de vítimas, nos últimos três anos mais de 10 mil pessoas morreram em choques étnicos e religiosos na Nigéria. Para melhor entender esses conflitos e tensões é necessário lançar um olhar atento sobre o grande mosaico étnico, religioso e cultural que é este país africano.
Com cerca de 924 mil km2, praticamente do tamanho do Sudeste brasileiro, a Nigéria, com mais de 120 milhões de habitantes é o mais populoso país da África. Como a imensa maioria dos Estados africanos, a Nigéria é uma construção política artificial criada pelos europeus, no caso pelo colonialismo britânico. Mesmo durante o período pré-colonial, o que hoje identificamos como o território nigeriano nunca foi unido. Durante a época colonial e mesmo depois da independência, conquistada no início da década de 1960, o embate entre forças unificadoras e desagregadoras da nação tem sido uma característica marcante da evolução política do país.
A estruturação do espaço político nigeriano pode ser entendida no contexto de uma divisão dual, de natureza geográfica e religiosa que opõe, de uma forma bastante genérica, um norte muçulmano politicamente dominante a um sul, cristianizado e animista, economicamente mais próspero.
O país pode ser analisado também sob o ângulo da repartição étnica da população. Embora constituído por mais de 250 etnias, três delas são demograficamente dominantes. Na porção norte do país estão os haussas-fulanis, aproximadamente 32% da população total e que em sua maioria professam o islamismo. O sudoeste é a área por excelência dos iorubas, cerca de 21% do efetivo demográfico, parcialmente cristianizados, islamizados e animistas. Por fim, a terceira grande etnia, a dos ibos, cerca de 18%, em grande parte cristãos, têm como núcleo o sudeste do país.

Esses três grupos étnicos se distinguem por sua fé religiosa, sua identidade lingüística e seu enraizamento territorial. Sua expressão demográfica, cultural, política e econômica lhes permitiu expandir seus territórios históricos e de satelizar algumas minorias circunvizinhas.
Se os três grandes grupos representam cerca de 70% da população, o restante forma um quarto agrupamento constituído por mais de 240 etnias, algumas delas compostas por apenas alguns milhares de indivíduos, mas que não são destituídas de influência. Com efeito, essas minorias estão bem representados nas forças armadas (instituição de muita influência) e formam a maioria da população nos estados federais do sudeste, onde estão as principais jazidas de petróleo e gás natural. Deve-se lembrar que esses recursos minerais são as principais riquezas da Nigéria, correspondendo a mais ou menos 90% das exportações do país.
Recusando-se a aceitar a hegemonia das três grandes etnias, esses grupos minoritários têm se pautado por fazer alianças complexas que, em muitos casos, lhes têm sido favoráveis. Aparentemente, esses grupos teriam muito a perder numa eventual implosão da federação, por isso sua tática têm sido a de lutar para que a Nigéria não se fragmente politicamente. Isso não quer dizer que essas etnias tenham projetos comuns. Pelo contrário, há diversos interesses contraditórios e intensas rivalidades entre elas que, não raramente, resultam em conflitos, especialmente na porção sul do país.
Por outro, foram elas as grandes beneficiadas pelo processo de fragmentação político-administrativa da Nigéria que passou de três estados federados em 1960, para mais de 30 na atualidade. A mudança da antiga capital do país, Lagos, localizada no sudoeste, portanto em território ioruba, para Abuja no cento do país, situada fora das áreas-núcleo das três principais etnias, indica a importância dada pelo governo central a esses grupos minoritários.
Deve-se ressaltar também que mesmo no interior das áreas-núcleo das três grandes etnias a composição da população não é homogênea. Cada uma das grandes zonas (norte, sudoeste e sudeste) possui grupos que são étnica ou religiosamente minoritários. Assim, no norte haussa-fulani islamizado, são encontrados inúmeros bolsões de população que seguem o cristianismo. No conjunto ioruba, aquele que se apresenta como mais homogêneo do ponto de vista étnico, há ocorrência de rivalidades regionais cujas raízes estão ligadas à época da escravatura quando grupos étnicos do litoral, capturavam escravos do interior para vende-los aos europeus. Na Nigéria contemporânea coabitam descendentes de escravagistas e vítimas desse processo. Este é um outro fator que contribui para explicar alguns dos rancores e antagonismos atuais.
Um  outro  aspecto que deve ser ressaltado é que os ibos foram, entre as três grandes etnias, aqueles que mais migraram de sua área-núcleo para outras regiões, especialmente para o norte do país. Nos últimos 50 anos, a história da porção setentrional da Nigéria tem sido marcada por perseguições, verdadeiros pogroms anti-ibo.
Eles são visados tanto por ser uma etnia exógena, como também por ser uma minoria cristã implantada no interior de uma área majoritariamente muçulmana. Durante a Guerra de Biafra, houve um êxodo maciço de ibos do norte em direção à sua área-núcleo. Terminado o conflito, ocorreram novos fluxos de migrantes ibos para outras regiões do país. Os que se estabeleceram no norte foram, em diferentes momentos dos anos 1990, vítimas de novas perseguições.

Já na região sudeste, apesar da predominância demográfica dos ibos, a tentativa de ampliar sua influência hegemônica é contestada por minorias étnicas que inclusive não se engajaram do lado dos separatistas ibos durante a Guerra de Biafra. Este acontecimento não foi esquecido por alguns setores da etnia ibo.
Em resumo, o mapa religioso da Nigéria compreende três grandes blocos. O islamismo, majoritário entre as populações haussa-fulani do norte, vem crescendo junto aos iorubas do sudoeste. Os cristãos, majoritários no seio das etnias sulistas, especialmente junto aos ibos e das pequenas etnias vizinhas, estão presentes também em bolsões minoritários no norte do país. Por fim, os cultos animistas, são expressivos junto às populações do sul, especialmente entre os iorubas.
Como esses três grandes conjuntos religiosos não coincidem exatamente com a distribuição étnica, surgem situações complexas. Nas últimas décadas, o islamismo teve forte crescimento no sudoeste junto à etnia ioruba, modificando a imagem do islamismo nigeriano, até então marcadamente haussa-fulani. No entanto, os iorubas muçulmanos têm a tendência de primeiramente se identificarem do ponto de vista étnico para depois indicar sua "preferência" religiosa.
A região norte tem sido nas últimas duas décadas palco constante de confrontações em função do crescimento de movimentos islâmicos radicais, estimulados por entidades financiadas por países do Oriente Médio (especialmente a Arábia Saudita) e uma onda de "nova evangelização" das etnias minoritárias não-muçulmanas, encorajada por seitas protestantes. Nesse contexto, qualquer pequeno incidente pode resultar em explosões de violência que só ajudam a perpetuar as tensões.
O crescimento do islamismo mais radical tem se verificado sobre os fracassos dos modelos ocidentais que foram tentados pelos diferentes governos que o país já teve. Recusando o processo de globalização e condenando a excessiva ocidentalização das elites corruptas, esses movimentos têm recrutado simpatizantes especialmente entre o grande número de jovens sem perspectiva que se amontoam nas periferias e favelas das grandes cidades do norte do país. Eles se constituem em massa de manobra facilmente manipulável.
É no contexto desse clima constante de tensões confessionais e étnicas que se pode entender como uma frase infeliz de uma jovem jornalista possa ter desencadeado um novo ciclo de violências. Dada a complexidade dos problemas internos do país e das tensões latentes acumuladas é quase um verdadeiro milagre que a Nigéria não tenha se desintegrado territorialmente.
Sugestão de livros que tratam sobre a Nigéria
1 – A história de Biafra: o nascimento de um mito africano, Frederick Forsyth, Record, 1977. Relato do autor que cobriu a Guerra de Biafra como correspondente da BBC de Londres, do Daily Express e da revista Time.

2 – Cães de Guerra, Frederick Forsyth, Record, 1974. Romance que retrata o mundo dos mercenários envolvidos em conflitos na África. Toda a trama do livro foi baseada na experiência do autor como jornalista cobrindo a Guerra de Biafra.



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