sábado, 20 de julho de 2013

É verdade que, quando se doa parte do fígado, ele se regenera?

Rodrigo Rezende

Sim. O fígado é o único órgão do corpo humano capaz de reconstituir até 75% de seus tecidos. O homem já conhece essa impressionante capacidade desde a Antiguidade. A mitologia grega conta que o titã Prometeu foi condenado por Zeus, o deus supremo, a passar a eternidade acorrentado a uma rocha,  sofrendo o ataque de um abutre que lhe devorava pedaços do fígado de tempos em tempos. O castigo seria infinito justamente por causa da regeneração do órgão. Apesar de bem criativa, a história soa algo absurda se a gente focalizar os aspectos médicos. Depois de séculos de experiências, os especialistas descobriram que o fígado não consegue se refazer diversas vezes - e, mesmo quando um pedaço do órgão é doado uma única vez, o "renascimento" pode ter alguns problemas. "Quando retiramos parte do fígado, os vasos sanguíneos não se recuperam plenamente e a circulação fica comprometida", diz o cirurgião Tércio Genzini, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, e especialista no assunto. Outro problema é que o tecido regenerado costuma ser fibroso, mais duro que o original. Isso aumenta as chances de o doador ter cirrose hepática, uma doença que pode fazer com que o órgão pare de funcionar, levando à morte. De qualquer forma, o transplante de fígado é o típico caso em que os benefícios compensam os eventuais problemas. "Quando retiramos parte do órgão de um doador vivo e o transferimos ao receptor, o órgão se multiplica nos dois pacientes. Em ambos, a reconstituição dos tecidos é completa, e o risco de vida para o doador é de apenas 1%", afirma Tércio. Chamado de transplante intervivo, esse tipo de operação está completando 50 anos de história - em 1954, um paciente recebeu um rim novo no pioneiro transplante intervivo em Boston, nos Estados Unidos. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, 24% dos transplantes realizados no primeiro semestre deste ano no Brasil foram desse tipo. Na ilustração ao lado, a gente dá mais detalhes dos quatro principais órgãos ou tecidos que podem ser transplantados entre duas pessoas vivas: o fígado, o rim, a medula e o sangue. Além deles, parte do pulmão e do pâncreas podem servir para doações de intervivos, mas essas modalidades de transplante são bem mais raras no país.
Jogo da operação

Reunimos as principais partes do corpo que podem ser transplantadas entre pessoas vivas.
FÍGADO

TRANSPLANTES EM 2004*: 432
PORCENTAGEM COM DOADORES VIVOS: 18%

RISCO DE REJEIÇÃO: 10%
LISTA DE ESPERA: 5 587 pacientes

SOBREVIDA DO ÓRGÃO: 12 horas fora do corpo

O fígado é o único órgão transplantável que se regenera. A possibilidade de se fazer transplante intervivo reduziu drasticamente a mortalidade na lista de espera. As crianças foram as principais beneficiadas: essa técnica representa mais de 50% dos transplantes pediátricos. Em 2003, o fígado ocupou o segundo lugar no ranking de transplante de órgãos, com 792 operações. Na frente dele, só os rins.
MEDULA

TRANSPLANTES EM 2004*: 510
PORCENTAGEM COM DOADORES VIVOS: 100% (52% com células de outras pessoas e 48% com células do próprio indivíduo)

RISCO DE REJEIÇÃO: Raríssimo (com células do próprio indivíduo) ou menor que 10% (com células de outra pessoa)
LISTA DE ESPERA: Não há cadastro unificado. O tempo varia dependendo do hospital

SOBREVIDA DO TECIDO: 10 anos (células congeladas em nitrogênio líquido)
A medula, estrutura que fica dentro do osso e produz os componentes do sangue, é o único tecido que pode ser transplantado com células da própria pessoa — em geral, doentes com câncer. Os médicos retiram a medula ou as células do sangue para reaplicá-las depois da quimioterapia. Mas a reincidência da doença é menor nos transplantes com células de outro doador.

SANGUE
TRANSFUSÕES EM 2004**: 309 mil

PORCENTAGEM COM DOADORES VIVOS: 100%
RISCO DE REJEIÇÃO: 1%

LISTA DE ESPERA: Não há
SOBREVIDA DO TECIDO: 35 dias fora do corpo (armazenado a 4 ºC)

Uma transfusão é um transplante de um tecido líquido, mas ninguém fala em "transplante de sangue" provavelmente porque esse procedimento é muito anterior às outras técnicas — surgiu no século 19, e os médicos preferiram manter o nome "transfusão". Testes rigorosos com doadores e materiais reduziram muito a transmissão de doenças contagiosas. Nos Estados Unidos, há um caso de contaminação por aids para cada 500 transfusões.
RIM

TRANSPLANTES EM 2004*: 1 609
PORCENTAGEM COM DOADORES VIVOS: 46%

RISCO DE REJEIÇÃO: 20%
LISTA DE ESPERA: 30 423 pacientes

SOBREVIDA DO ÓRGÃO: 36 horas fora do corpo
O primeiro transplante de rim foi realizado em 1954 entre dois irmãos gêmeos vivos para diminuir a probabilidade de rejeição. O rim é o órgão mais comum em transplantes intervivos, pois não há muita dificuldade de o doador sobreviver com apenas um dos órgãos.

Revista Mundo Estranho Edição 32/ 2004

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