O gaúcho Oswald
Müller, 101 anos e segundo aeroviário registrado no país, conta como era o
tempo em que o tráfego aéreo era feito por telégrafo e os atrasos, mais que
normais, eram esperados.
No registro profissional de aeroviário do gaúcho Oswald
Müller consta o número 2 – antes dele, só Ruben Berta, ex-presidente da Varig.
Em 1927, o descendente de alemães foi indicado pelo próprio Berta para ingressar na Condor Syndikat, a
primeira empresa aérea a operar vôos comerciais no Brasil. A companhia
germânica procurava um brasileiro que dominasse o idioma alemão para ser
secretário do diretor-técnico. Foi assim que, aos 21 anos de idade e sem
entender nada de aviação, ele topou o desafio e mudou-se para o Rio de Janeiro
– onde mora até hoje com a esposa, em um retiro para idosos da comunidade alemã
em Jacarepaguá.Durante quatro horas de conversa, Müller falou da emoção que sentiu ao ver pela primeira vez o legendário hidroavião Atlântico sobrevoar a cidade de Porto Alegre. E do tempo em que voar era missão para poucos – além de coragem, a pessoa deveria ter menos de 75 quilos, incluindo a bagagem, para não pagar taxa extra.
Hoje, aos 101 anos, pouco mais de 30 após ter se aposentado como diretor-conselheiro da empresa, que passou a se chamar Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, o aeroviário vivo mais antigo da história da aviação comercial garante que nunca teve medo de voar. Nem mesmo quando o controle aéreo era feito via telégrafo e os atrasos eram constantes. “Ninguém reclamava. Era normal”, diz.
Como a aviação
comercial começou no Brasil?
Oswald Müller – O engenheiro alemão Fritz Hammer, que fez o
primeiro vôo de carreira da colombiana Scadta (atual Avianca), tornou-se o
pioneiro da aviação comercial na América, em 1919. Como queria fazer uma linha
que ligasse a Colômbia à América do Norte, fundou em 1924 a empresa Condor
Syndikat, sediada em Berlim. E encomendou dois modelos de hidroavião, os quais
batizou de Atlântico e Pacífico. Quando pediu ao governo americano uma licença
para iniciar um tráfego regular, a americana Panair começava suas operações e o
pedido foi negado. Dois anos depois, foi fundada na Alemanha a Lufthansa, que
incorporou a Condor com o objetivo de criar uma linha regular na costa leste da
América do Sul, o que incluiria a costa brasileira.
Quais foram as primeiras rotas operadas no Brasil?
A primeira, inaugurada em fevereiro de 1927, foi Porto
Alegre-Pelotas-Rio Grande, com saídas três vezes por semana. Nove meses depois
foi inaugurada a linha Porto Alegre-Rio de Janeiro. Como eram hidroaviões, só
podiam parar em cidades que tinham portos.
Qual era o modelo do Atlântico?
Era um Dornier Wall equipado com dois motores Rolls-Royce,
cada um com potência de 360 cavalos. Ele tinha 16 metros de comprimento e capacidade
para transportar três tripulantes e nove passageiros.
O senhor se lembra da primeira vez que viu o avião no céu?
Eu morava em Porto Alegre e estava em casa, regando as
plantas do jardim. O Atlântico passou uns 200 metros acima da minha cabeça, como
se quisesse me cumprimentar. Fiquei maravilhado.
O senhor foi o segundo aeroviário registrado no país. Como
surgiu o convite para ingressar nessa área?
A sede da Condor Syndikat ficava em Porto Alegre e o
diretor-técnico precisava de um secretário brasileiro que falasse alemão
fluentemente. O Ruben Berta, que era meu amigo dos tempos do colégio, havia
sido contratado pela Varig – co-fundada pela Condor em junho de 1927 – e me
indicou para o cargo. Isso foi no dia 15 do mesmo mês. Na época, não entendíamos
nada de aviação. Eu tinha 21 anos de idade, ganharia um salário de 500 contos
de réis – o dobro do que ganhava no antigo emprego – e teria que mudar para o
Rio de Janeiro. Aceitei na hora. E me tornei o segundo aeroviário brasileiro
registrado. O Ruben havia sido o primeiro.
A fluência em alemão foi seu trunfo?
Sem dúvida. Todos os funcionários da Condor eram alemães que
mal falavam português. E não havia termos apropriados em português para muitas
palavras em alemão. Aí a solução era criar termos equivalentes. O verbo
“decolar”, por exemplo, surgiu muito mais tarde, derivado do francês. Antes
disso, falávamos “gestartou”, numa tentativa de traduzir gestartet, em alemão.
O mesmo ocorreu com “gelandou”, palavra equivalente para gelandet, que mais
tarde recebeu uma tradução mais adequada, “pousou”. O termo “comandante” só
surgiu na década de 1940. Antes, falávamos só “piloto”.
Quais foram as suas funções na Condor Syndikat?
Depois de trabalhar como secretário do diretor-técnico, passei a atuar como
despachante, função que ocupei durante três anos e meio. Em 1954, passei a
diretor de operações, cargo em que fiquei por mais 14 anos, com 3 mil
funcionários sob o meu comando. Mais tarde passei a diretor de compras e, em
1975, me aposentei como diretor-conselheiro.
O senhor nunca teve vontade de ser piloto?
Quiseram me mandar para a Alemanha para eu aprender a
pilotar. Mas teria que ficar muito tempo longe de casa, da minha esposa e dos
meus três filhos. Não quis. Preferi trabalhar em terra.
Naquela época, voar de avião era considerado uma aventura.
Por quê? Como eram as aeronaves?
Só os corajosos viajavam, não havia nenhum conforto. Era
tudo no peito e na raça. As aeronaves faziam muito barulho, por isso era
impossível conversar. Todos os passageiros ganhavam pedaços de algodão para
colocar nos ouvidos. As poltronas eram de vime, um material leve. E o banheiro
era apenas um compartimento com penico. Praticamente ninguém usava. Mas, ao
mesmo tempo, era uma maravilha poder ver a paisagem lá do alto.
Havia limite de peso para os passageiros?
Sim, passageiros com mais de 75 quilos, incluindo a bagagem,
pagavam 1% do valor da passagem a cada quilo a mais. Lembro que certa vez, em
um dia de mar calmo e sem ondas, estava difícil decolar. Rodei de lancha ao
redor do avião para provocar ondas e diminuir o atrito, mas nem assim a
aeronave conseguiu levantar vôo. A solução foi desembarcar um passageiro que
escolhi aleatoriamente, o número 3, mas ele se recusou. Disse que ia se casar
naquele dia e que precisaria chegar em Florianópolis às 4 horas. O passageiro
de número 2 ficou comovido e desceu do avião. Mas até hoje eu desconfio se
aquela história era mesmo verdade.
Quais foram as situações mais inusitadas que o senhor
presenciou?
Naquela época, as janelas dos aviões eram abertas. Certa
vez, viajei com a minha esposa, que sentou ao lado da janela, logo atrás de uma
grande autoridade política do Rio Grande do Sul. Ele estava fumando charuto e
cuspia pela janela o tempo todo. Até que, numa dessas, o cuspe foi todo no
rosto dela. Foi constrangedor.
Qual era o perfil dos passageiros?
Homens de negócios, com o objetivo de encurtar o tempo de
viagem. Naquela época, uma viagem de avião de Santos ao Rio de Janeiro demorava
duas horas e 20 minutos e o avião viajava a uma velocidade média de 180
quilômetros por hora. As pessoas comuns tinham medo, preferiam passear de
carro.
E o senhor, tinha medo?
Não, nunca tive. Eu era desportista, fazia ciclismo, remo,
jogava pólo aquático. Topava qualquer parada.
O senhor foi também o primeiro passageiro da história da
Varig?
Sim. Uma semana depois de eu ter sido contratado pela
Condor, a Varig fez seu vôo inaugural. Como a empresa ainda não tinha licença,
seria apenas uma volta de demonstração sobre a cidade de Rio Grande. A bordo,
apenas os tripulantes e eu. Não paguei passagem, mas fui considerado o primeiro
passageiro na história da companhia.
Alguma vez na vida o senhor teve de pagar passagem?
Funcionários e filhos de funcionários tinham de pagar 20% do
valor, mas eu sempre ganhei muitas passagens. Rodei o mundo viajando de avião.
Qual era a relação da Condor com a Varig?
Quando a Varig foi fundada, a Condor já havia feito cerca de
50 vôos. Ela foi a primeira empresa de aviação nacional, uma vez que a Condor
só se nacionalizou dez meses depois de chegar ao Brasil. Mas a Condor pode ser
considerada a “mãe” da Varig, pois cedeu equipamentos, a linha aérea Rio
Grande-Porto Alegre, já em tráfego, tripulantes e know-how. E ficou com 21% do
capital social, tornando-se acionista majoritária.
Como era controlado o tráfego aéreo sem computador?
A comunicação era feita por terra, via telégrafo. Por isso,
os funcionários tinham de aprender a utilizar o código morse para trabalhar. A
cada decolagem, era emitido um documento com a hora da partida, a previsão de
chegada e o número de passageiros.
Havia muitos atrasos?
O avião não tinha instrumentos para vôo sem visibilidade
exterior. O velocímetro é que indicava se a aeronave estava descendo ou
subindo. Para evitar choques com morros, voava-se sempre abaixo do nível das
nuvens. E, quando a visibilidade era comprometida pelo mau tempo, o avião
pousava em alguma lagoa até o tempo melhorar. Os atrasos eram freqüentes, mas
ninguém reclamava. Era assim mesmo.
Quais as evoluções tecnológicas das aeronaves que mais o
surpreenderam?
Nunca imaginei que um dia os aviões pudessem voar sozinhos.
Hoje, eles decolam, voam e pousam sem um piloto.
Diante do caos aéreo que assusta o país desde o ano passado,
o senhor teria receio de viajar de avião atualmente?
De jeito nenhum. Esse alarde todo está acontecendo por causa
do acidente com o avião da Gol (em 29 de setembro de 2006, quando o Boeing
737-800 colidiu com um Legacy 600, matando 154 pessoas). Alguém errou, mas
mesmo esse erro foi uma fatalidade colossal. Mesmo que os envolvidos quisessem
provocar o acidente, seria quase impossível duas aeronaves se chocarem de
frente. O espaço aéreo é muito grande, e acima do nível das nuvens a
visibilidade é perfeita. Se um dos pilotos tivesse olhado para a frente aquilo
não teria acontecido. Bastava desviar pela vertical ou pela horizontal. Tenho absoluta
convicção de que viajar de avião é muito mais seguro do que de carro. Carros
batem todos os dias, aviões não.
Qual foi o acidente aéreo mais marcante na opinião do
senhor?
O que aconteceu com o hidroavião Santos Dumont, em 3 de
dezembro de 1928. Foi um vôo de boas-vindas ao pai da aviação, que chegava da
França de volta ao Brasil a bordo de um transatlântico. O hidroavião havia
decolado do Caju e, ao fazer uma curva em ascensão, perdeu a sustentação e
entrou em parafuso, caindo na baía de Guanabara. Todos os seis passageiros e
três tripulantes morreram.
O que é mais importante: uma boa aeronave ou um bom piloto?
Os dois. O piloto, além de ter conhecimento técnico, deve
ser sério, correto e ter muito senso de responsabilidade para transportar
centenas de vidas. Eu já demiti muito piloto irresponsável.
Aventuras na História
n° 048
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