quinta-feira, 31 de março de 2011

ATAQUE AO IRAQUE PREPARA SUBMISSÃO DE TODO O GOLFO PÉRSICO

Em função das dimensões do setor petrolífero saudita, a monarquia desempenha um papel singular e crítico na definição dos preços internacionais do petróleo. (...) Riad quer manter preços elevados pelo maior tempo possível. Mas os preços não podem ser tão altos que contenham a demanda ou estimulem fontes concorrentes de energia. (...) Impedir os preços do petróleo de subir demais requer capacidade ociosa suficiente para usar no caso de emergências. (...) A capacidade ociosa saudita é o equivalente energético das armas nucleares  uma poderosa dissuasão contra os que tentam desafiar a liderança e os objetivos sauditas.
Também é o pilar das relações americano-sauditas. Os Estados Unidos confiam nessa capacidade como o alicerce da sua política petrolífera. Esse arranjo funcionou com perfeição enquanto a proteção americana garantia que Riad não “chantagearia” .
(Edward L. Morse e James Richard, “The Battle for Energy Dominance”, Foreign Affairs, March/April 2002, p. 18-20)
O Iraque entrou na alça de mira de George Bush há mais de um ano. Em janeiro de 2002, quando bombas estadunidenses ainda caíam sobre o Afeganistão, o discurso sobre o Estado da União de Bush definiu os contornos da segunda fase da “guerra ao terror”. O foco,  agora, passavam a ser Estados suspeitos de desenvolverem programas de armas de destruição em massa: Iraque, Irã e Coréia do Norte  na linguagem pueril de Bush, integrantes do “eixo do mal”. Alguns meses depois, a Doutrina Bush adquiriu forma definitiva, com a proclamação de seu suposto direito de promover “ataques preventivos” contra esses Estados.
“Não permitiremos que os regimes mais perigosos do mundo nos ameacem com as armas mais destrutivas”, explicou Bush. As referências ao Irã e à Coréia do Norte jamais encobriram o alvo principal: o Iraque de Saddam Hussein. A decisão de atacar o Iraque e substituir a ditadura de Hussein por um protetorado informal dos Estados Unidos já estava tomada. A expulsão dos inspetores da ONU pelo regime de Bagdá, ocorrida em 1998, servia como luva para os propósitos de Washington.
Sob pressão da opinião pública e da comunidade internacional, os Estados Unidos procuraram agir com a cobertura do Conselho de Segurança (CS) da ONU.
Uma resolução do CS exigindo que Bagdá admitisse a retomada do regime de inspeções foi aceita por Saddam. A equipe de inspetores procurou, sem sucesso, as “armas fumegantes” do Iraque e não encontrou sequer indícios convincentes de programas de produção de arsenais químicos, biológicos ou nucleares. Enquanto isso, há três meses, a Coréia do Norte anunciava impunemente a ruptura dos acordos que congelaram o seu programa nuclear. Assim, a campanha de propaganda de Washington, destinada a legitimar o ataque contra o Iraque, revelou-se farsa .
A desmoralização dos argumentos de Washington repercutiu sobre a opinião pública, especialmente na Europa, provocando manifestações impressionantes contra a “guerra de Bush”. Confrontado com a derrota iminente nas eleições alemãs, o chanceler social-democrata Gerhard Schroeder prometeu ao eleitorado que o país ficaria fora da guerra e ganhou um novo mandato. França e Alemanha uniram-se e desafiaram Bush e o britânico Tony Blair, ameaçando bloquear as decisões militares da OTAN, abrindo a maior crise na história da Aliança Atlântica.
França e Rússia anunciaram a disposição de exercer o direito de veto no CS.
Nada disso foi capaz de deter os Estados Unidos. Claro: Bush escolheu o Iraque pois o Golfo Pérsico concentra as reservas estratégicas de petróleo do planeta. O Iraque controla cerca de 10% menos, apenas, que a Arábia Saudita. A transformação do país em protetorado informal dos Estados Unidos conferirá à hiper-potência uma posição invejável na geopolítica contemporânea do petróleo . O petróleo é uma explicação correta, mas insuficiente, para a decisão de Bush. Em 1991, George Bush pai tinha o caminho livre para marchar até Bagdá, mas preferiu interromper a ofensiva e conviver com o regime de Hussein. Sob Bill Clinton, Washington manteve o Iraque sob embargo permanente e bombardeios eventuais, mas nunca acenou com uma guerra total.
A novidade é a “guerra ao terror” e suas repercussões no equilíbrio estratégico do Golfo Pérsico. O verdadeiro perigo, do ponto de vista dos Estados Unidos, reside na instabilidade crescente  da Arábia Saudita. Esse é o motivo da pressa de Bush.
Crise da monarquia saudita
A bandeira da Arábia Saudita exibe, sobre o fundo verde, uma larga inscrição em árabe com os dizeres “Alá é o único Deus e Maomé é seu profeta”. Sob a inscrição, aparece um sabre horizontal. Ela representa a aliança entre a pena (a sabedoria religiosa) e a espada (o guerreiro da fé). Essa aliança originou o Estado saudita, o único no mundo produzido pela jihad (a “guerra santa”).
No século XVIII, o clã guerreiro dos Al-Saud, baseado na Arábia central, firmou uma aliança com a seita islâmica puritana dos Wahabitas. Os Wahabitas conclamaram a jihad e recrutaram os ikhwan (“irmãos”), guerreiros fanáticos que serviram como linha de frente da cavalaria dos Al-Saud.
Numa noite enluarada de 1902, Abdul Aziz ibn Saud, à frente de quarenta guerreiros, tomou Riad e fundou a Arábia Saudita. Era o início de uma guerra de trinta anos pela unificação geopolítica da península, cujo ponto alto foi a tomada das cidades santas de Meca e Medina, em 1925.
Mas os fanáticos ikhwan recusaram-se a abandonar o expansionismo jihadista e, ignorando um tratado de fronteiras firmado por ibn Saud, invadiram cidades xiitas do sul do Iraque. Os britânicos, que governavam o Iraque, responderam com um bombardeio aéreo. Diante da contestação ao seu poder, ibn Saud ordenou um massacre contra os ikhwan, que foram dizimados sob o fogo de metralhadoras, em Sabila, em 1929.
A aliança entre a espada e a pena continua a sustentar o Estado saudita. Os Al-Saud – cerca de 25 mil, entre os quais 5 mil príncipes – têm o trono. O monarca exerce o poder de modo absoluto, mas não pode mudar a sharia (lei corânica) – que funciona como legislação nacional  ou interferir sobre os costumes religiosos. A seita Wahabita controla as esferas da religião, da educação e das comunicações.
Osama Bin Laden é um ikhwan contemporâneo.
Ele surgiu como liderança combatendo a ocupação soviética do Afeganistão, na década de 80. Foi financiado pela CIA e por milionários sauditas. Depois da retirada soviética, voltou para a Arábia Saudita, mas rompeu com a monarquia em 1991, em virtude da aliança com os infiéis estadunidenses durante a Guerra do Golfo. A ruptura foi negociada: Bin Laden comprometeu-se a não agir na Arábia Saudita; a monarquia, a ignorar as conexões entre a sua organização terrorista e a seita Wahabita.
O ikhwan estabeleceu-se, com a sua Al-Qaeda, no Afeganistão, sob a proteção do Taleban. Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram financiados por sauditas, através de algumas das inúmeras organizações islâmicas internacionais de caridade. Dos dezenove terroristas envolvidos nos atentados, quinze eram de origem saudita. Entre os republicanos de linha dura que cercam Bush, a monarquia saudita chegou a ser apontada como um câncer a ser extirpado.
Sob pressão da Casa Branca, começa a ceder o material que sustenta a aliança entre os Al-Saud e os Wahabitas. A família reinante só evitaria a cisão interna se voltasse as costas para Washington, engajando-se abertamente no caminho da jihad. Colhido entre as exigências contraditórias dos Estados Unidos e dos Wahabitas, o Estado saudita pende sobre o abismo. A eventual  dissolução do Estado fundado por ibn Saud lançaria o Golfo Pérsico no desconhecido, ameaçando os fluxos de petróleo que irrigam a economia mundial. É por isso que Bush avança sobre Bagdá: a campanha do Iraque é o primeiro passo para a submissão direta de toda a região do Golfo Pérsico.
UMA GEOPOLÍTICA CONTEMPORÂNEA DO PETRÓLEO
Os preços do barril de petróleo conheceram dois “choques” acentuados, em 1973 – com a Guerra do Yom Kippur, entre Israel e os países árabes – e 1979 – com a Revolução Iraniana. Em 1981, quando o barril atingia a sua mais elevada cotação histórica, o Golfo Pérsico concentrava quase 54% das reservas mundiais comprovadas. A Arábia Saudita, isoladamente, abrigava um quarto das reservas mundiais, mas o Iraque detinha apenas cerca de 5%.
Os preços recordistas, a instabilidade política no Oriente Médio e a insegurança gerada pelo controle da OPEP sobre o mercado mundial do petróleo estimularam a prospecção de reservas fora do Golfo Pérsico. Mas, embora as reservas mundiais comprovadas tenham crescido em cerca de 60%, a dependência estrutural em relação ao Golfo Pérsico aumentou. Atualmente, o Golfo Pérsico concentra quase 64% das reservas mundiais. A participação da Arábia Saudita não sofreu mudança significativa. Mas a participação do Iraque dobrou, atingindo 10,5% do total .
A distribuição da produção de petróleo não se confunde com a das reservas, pois depende das políticas nacionais e, no caso dos integrantes da OPEP, dos acordos de cotas firmados no interior do cartel. Em conjunto, os países do Golfo Pérsico respondiam por cerca  de 37% da produção mundial em 1973 e, atualmente, respondem por 30%. O contraste entre a distribuição das reservas e a participação na produção revela que, provavelmente, o Golfo Pérsico continuará extraindo vastas quantidades de petróleo quando as reservas do resto do mundo se aproximarem  do ponto de esgotamento.
O esgotamento das reservas do resto do mundo é, ainda, uma perspectiva distante. Contudo, o problema principal não está na disponibilidade física de petróleo, mas no preço de extração. Os campos de petróleo do Golfo Pérsico são pouco profundos, assegurando baixos custos de produção. No resto do mundo, as reservas próximas à superfície já são escassas e devem se esgotar em poucas décadas.
Quando isso acontecer, a dependência mundial em relação a alguns poucos países do Golfo Pérsico se evidenciará de modo crítico. Esses países são, pela ordem das reservas, Arábia Saudita, Iraque, Irã, Emirados Árabes Unidos e Kuwait.
O consumo mundial de petróleo atingiu cerca de 3,57 bilhões de toneladas no ano 2000. Desse total, pouco mais de 2 bilhões de toneladas – ou quase 57% – são constituídas por petróleo importado, o que revela a importância extraordinária do comércio internacional para o consumo desse produto. As importações mundiais de petróleo apresentam perfil de distribuição tão desigual quanto as reservas. Os Estados Unidos, isoladamente, concentram um quarto das importações mundiais – mais que o dobro do segundo importador, que é o Japão.
Ou seja: os Estados Unidos estão para as importações mundiais de petróleo como a Arábia Saudita está para as reservas comprovadas.
O maior importador de petróleo é, simultaneamente, o segundo maior produtor – atrás, apenas, da Arábia Saudita. Os Estados Unidos consomem nada menos que 865 milhões de toneladas anuais, ou um quarto do consumo global. O petróleo importado assegura quase 60% do consumo americano.
A sede insaciável da superpotência por petróleo não reflete apenas o tamanho da economia americana, mas sobretudo o elevado consumo energético per capita, que atinge cerca de duas vezes o de outras potências econômicas como o Japão, a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha. Não é casual, portanto, que a administração Bush tenha retirado os Estados Unidos do Protocolo de Kyoto, que se destina a limitar as emissões de “gases de estufa”.
A economia e a sociedade americanas estão estruturadas pelo consumo intensivo de energia. Esse traço distintivo se manifesta nos padrões de consumo. Um exemplo: o sucesso estrondoso dos utilitários esportivos beberrões de gasolina, que são responsáveis por nada menos que 50% das vendas de automóveis no país.
Mas o fundamento do consumo intensivo de energia são as políticas públicas que sustentam – às custas de subsídios indiretos e quase nenhuma tributação – preços artificialmente baixos de eletricidade e derivados de petróleo. No caso dos combustíveis para veículos automotores, os preços praticados nos Estados Unidos contrastam não só com os de outros países desenvolvidos, mas até mesmo com os de países subdesenvolvidos como a Coréia do Sul, o México e a Índia .
O controle geopolítico sobre as fontes estratégicas de suprimento de petróleo é uma prioridade absoluta para os Estados Unidos.
É, sob a perspectiva de Washington, algo tão importante quanto a capacidade de desenvolver tecnologias de ponta em setores como a informática, a biotecnologia e a indústria aeroespacial. É por isso que os grandes “reservatórios de petróleo” do Golfo Pérsico  como a Arábia Saudita e o Iraque – constituem o foco principal da política externa da administração Bush.
O QUE A CORÉIA TEM QUE O IRAQUE NÃO TEM?
Enquanto os inspetores da ONU procuravam, com lupas, algum indício de armas de destruição em massa no país de Saddam Hussein, o regime norte-coreano anunciava a reativação da central nuclear de Yongbion, que poderia fornecer material para ogivas nucleares, e declarava-se disposto a prosseguir a construção de mísseis capazes de atingir o Japão e, eventualmente, a costa oeste dos Estados Unidos.
O desafio coreano serviu para despir George Bush. O chefe guerreiro do deserto, um tanto perplexo, “explicou” que, no caso da Coréia do Norte, o caminho a seguir é o da diplomacia. Mas, afinal, o que a Coréia tem que o Iraque não tem, além de arsenais de armas de destruição em massa?
A Coréia do Norte tem um vizinho poderoso  a China  que não admite uma “guerra americana” no seu quintal. Tem, também, nos seus arredores, potências econômicas aliadas de Washington – o Japão e a Coréia do Sul – que tremem diante dos cenários de mísseis voando sobre suas cidades e de fluxos incontroláveis de refugiados deixando o teatro de guerra.
Mais importante ainda é o que a Coréia do Norte não tem: petróleo. Isso, claro, é o que está em jogo na guerra de Bush.
Boletim Mundo Ano 11 n° 1

ÍNDIA: MISÉRIA QUASE CORDIAL

ÍNDIA: MISÉRIA QUASE CORDIAL
Gilson Schwartz
Macacos. Ratos. Elefantes. Camelos. Pombos. Vacas. Porcos. Najas. Mulas. Cabritos. Galinhas. Carros.
Motos. Bicicletas. Ônibus. Carroças. Riquixás motorizados. Riquixás puxados por esquálidos.
Riquixás pedalados por esquálidos. Gente fazendo suas necessidades nas ruas. Gente tomando banho nas ruas. Gente dormindo ao relento. Favelas. Conjuntos habitacionais.
Saris multicoloridos. Milhares de pequenos negócios incrustados em ruelas. Vendedores ambulantes. Grandes magazines. Comilanças nas calçadas. Crianças sujas correndo por todos os lados. Fumaça, muita fumaça.
Calor tropical.
Rostos quase negros. Barbas asiáticas. Olhares tristes. Sorrisos raros.
Turbantes em formas surpreendentes. Véus coloridos quase ocultando olhos sensuais. Brâmanes seminus.
Palácios abandonados. Pontos turísticos mal conservados. Estradas sem sinalização. Em caminhões e riquixás, o aviso: “buzine, por favor!” Barulho, muito barulho.
De repente, o enorme caminhão bate de leve no carrinho da frente.
Acidente leve, milhares de carros parados, aquele tipo de colisão freqüente em congestionamentos. Do carrinho sai um sujeito relativamente bem vestido, que sobe na cabine e de lá arranca o motorista mais escuro, mal vestido a atarracado. Dá-lhe uma surra. O motorista não revida, ninguém intervém: o motorista é pobre.
Dos quase um bilhão de habitantes, 10% de muçulmanos. Massacres sanguinários são freqüentes. Nas cidades, enormes outdoors convocam para a luta contra o terrorismo. O racismo é latente numa sociedade marcada pela diversidade étnica e pela extrema desigualdade.
A miséria na Índia é quase cordial. Depois de duas semanas viajando por cidades do sul e do norte (Bangalore, Mysore, Nova Delhi, Jaipur), o Brasil passa rapidamente para a categoria de país quase desenvolvido.
Mas, enquanto a miséria brasileira produz uma violência cotidiana, diretamente associada à luta pela sobrevivência física, os indianos parecem acomodar-se melhor à própria miséria.
A violência brasileira é, muito freqüentemente, individualista. É um recurso extremo que gera organizações (Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, etc.) mas que é predominantemente dispersa. Na Índia, uma miséria que parece ainda mais intensa não se traduz em criminalidade e a violência é coletiva, étnica, racista.
Mesmo em cidades como o Rio de Janeiro, onde as favelas estão próximas, senão contíguas, aos prédios da elite, há uma demarcação de territórios. Nas cidades da Índia, a miséria se esparrama por todos os lugares e não é fácil distinguir centro de periferia. Tudo é periferia, com exceção das áreas governamentais, fortemente protegidas pelo aparato militar.
Nas grandes praças, o povo passeia e dá mostras de uma docilidade quase infantil, rompida apenas por episódios de violência coletiva que regularmente chegam aos jornais. Viajando com uma esposa loira de olhos azuis, fomos obrigados a parar dezenas de vezes para tirar fotos com jovens indianos.
Em alguns casos, a fila era grande e só conseguíamos nos afastar, assustados, aos gritos, tamanha a curiosidade que o ocidental típico  ainda desperta.
A alta tecnologia – bomba atômica, produção de software convive na Índia com uma pobreza de proporções tão alarmantes que se perde a esperança de solução. Antes de conhecer a Índia tão de perto, minhas informações eram de caráter principalmente econômico e tecnológico. Ao contrário de países como o Brasil (e outros da América Latina) e mesmo da Ásia (como Tailândia e Coréia do Sul), a Índia não sofreu tanto com as crises financeiras dos últimos anos. Muitos economistas ressaltam o caráter mais fechado da economia indiana, suas políticas menos ocidentalizantes apesar das reformas liberais que também ali foram  implementadas. Depois de viajar pelo país, tenho a impressão de que essa resistência à globalização é fruto não apenas de escolhas políticas, mas de uma cultura peculiar que é incompatível com o padrão ocidental de organização de cidades e governos. Por mais que os jovens sejam seduzidos pela atração fatal da loira ocidental de olhos azuis.
Um pequeno conto, “Jardim”, escrito por R. K. Narayan, resume bem o cenário. Um vendedor de fertilizantes resolve, finalmente, fechar as portas e cercas de sua propriedade, antes visitada cotidianamente por vacas, mendigos, corvos e outros animais. Decidido a cultivar um jardim, ele começa a atirar nos corvos, bloqueia a entrada de vacas e até impede grupos de passar pela propriedade, antes usada como parte de um atalho nos caminhos do vilarejo. O resultado é a falência de seu negócio de venda de fertilizantes, até que ele resolve liberar o acesso ao seu terreno. Tarde demais.
Ele já havia perdido o emprego e só se recuperaria dois anos depois. Moral da história: se você achar que a grama de seu jardim está muito seca, deixe estar, nunca tente plantar  rosas nesse lugar.
O conto é emblemático. A propriedade privada existe, mas há um caldo de cultura em que a coletividade vem para primeiro plano – uma coletividade formada não apenas por pessoas mas também por animais e plantas.
A tentativa de organizar esse espaço a partir de um projeto individual está condenada ao fracasso. É melhor se acostumar com as vacas e os mendigos. E sair para as ruas preparado para um festival  de cores, sons e cheiros que variam do apetitoso ao nauseante.
A imagem de um homem que fracassa ao tentar cultivar um jardim em sua casa se aplica às cidades e ao país. Há fronteiras pouco nítidas, para um turista ocidental, entre a riqueza e a miséria, a beleza e o horror, o progresso e a ruína: tudo convive em todos os lugares.
Boletim Mundo Ano 11 n° 1

AS MIL E UMA HISTÓRIAS DE BAGDÁ

Mamede Mustafa Jarouche
No século XIII, mais precisamente em 1258 d.C., os mongóis invadiram Bagdá, então uma das cidades mais civilizadas do planeta. A devastação que eles levaram a cabo quase não teve paralelo na história da humanidade: foram oito dias de pilhagem e massacres tão violentos que, com os crânios das vítimas, os mongóis montaram 120 pirâmides. Finalmente, o chefe dos invasores, Hulago, determinou a morte do último califa da dinastia abássida, e deixou que seus soldados lançassem os manuscritos das bibliotecas no rio Tigre. Conta-se que as águas do rio ficaram negras, e que se podia atravessá-lo de uma margem a outra a pé. E por que Hulago fez o que fez? Resposta: porque dispunha de um exército suficientemente poderoso.
Bagdá era rica, prestigiosa, situada em  ponto estratégico. Por que não? Como ninguém conseguia detê-lo, ele foi em frente.
Em certo sentido, esse acontecimento marcou o fim de uma era. Embora já tivesse vivido dias mais gloriosos entre o século VIII e o X, Bagdá continuava então com o prestígio quase intacto: sede do califado muçulmano e de imensas riquezas, ponto para o qual afluíam poetas, escritores, filósofos, cientistas, teólogos e todo aquele que estivesse atrás de melhores oportunidades na vida.
A cidade foi construída em 762 pelo califa abássida al-Mansur, que a denominara igualmente de Madínat Assalám (“cidade da paz”), para marcar devidamente a mudança de poder que se operara no mundo árabe-muçulmano em 750, quando a dinastia omíada, que reinava em Damasco, fora desalojada do poder por uma revolução liderada pelos abássidas.
A localização da nova capital não foi escolhida por acaso: de um lado, afastava o poder central da Síria, que fora base da dinastia anterior, e, de outro, aproximava-a da Pérsia, cuja  população aderira em peso à revolução. E, assim, Bagdá também ficaria próxima do lugar onde haviam se desenvolvido, havia milênios, os impérios mesopotâmicos: Suméria, Babilônia e Assíria, autêntica aurora da civilização humana.
Fundada por Maomé (ou, mais corretamente, Muhammad) no século VII, na desértica Península Arábica, a religião muçulmana logo conheceu uma rápida expansão: em menos de um século, atingira, no Ocidente, a Península Ibérica, e, no Oriente, chegara ao arquipélago malaio. Esse enorme império era governado a partir de um poder central, primeiramente situado na cidade de Medina, onde o profeta falecera, mas que logo se transferiu para Damasco, atual capital da Síria. O sistema de “califado”, criado após a morte do profeta para designar quem o sucederia na liderança política e religiosa dos muçulmanos, não era, no início, hereditário: os quatro primeiros califas foram escolhidos mediante consenso dos líderes da comunidade.
Foi somente sob o governo da dinastia abássida que o mundo muçulmano atingiu seu máximo esplendor cultural. A poesia, contínuo objeto de cultivo pelos árabes, conhece expansão e renovação, fruto das novas formas de ver e sentir. A prosa atinge seu apogeu, com a elaboração de crônicas e fabulários que circularão por todo o mundo civilizado. Todo império precisa de uma historiografia para legitimar-se: de pronto surgem dezenas de historiadores, que produzem relatos minuciosos, utilizando, para os eventos contemporâneos, a técnica de divulgar todas as versões correntes.
Os conhecimentos geográficos, dada a vastidão do mundo muçulmano, se ampliam, com a redação de inúmeros tratados, que obedeciam quer a imperativos  de ordem interna, para maior conhecimento das regiões governadas, quer externa, como instrumento auxiliar aos mercadores muçulmanos que cruzavam o mundo, ou então como descrição de regiões que não faziam parte do império. Como conseqüência quase natural, também os conhecimentos náuticos se incrementam, e rapidamente os muçulmanos ascendem à categoria de hábeis navegadores: entre seus legados ao Ocidente está a bússola. A teologia e a interpretação do Alcorão e demais textos canônicos conhecem extraordinário desenvolvimento, bem como a lexicografia e as ciências lingüísticas.
Proliferam os tratados retóricos, poéticos e políticos. Escrever sobre a arte de bem governar torna-se uma espécie de obsessão dos conselheiros de califas e sultões.
As ciências e a medicina não ficaram atrás nessa marcha. Os hospitais espalhados pelo mundo islâmico eram, em geral, de grande qualidade, e contavam com corpo médico qualificado. Conta-se que certo médico, tendo sido encarregado de escolher um local de Bagdá para a construção de um hospital, espalhou por vários pontos da cidade pedaços de carne fresca, e escolheu aquele em que ela mais demorou a se deteriorar: empirismo até hoje válido. Na matemática, criaram o conceito de álgebra e introduziram os algarismos, até hoje conhecidos como arábicos, por oposição aos romanos. A divulgação do “zero”, que mais do que mero algarismo é uma noção bastante complexa, foi de fundamental importância para os cálculos. A química e a astronomia também se desenvolvem, a partir da alquimia e da astrologia.
Não é à toa que muitas das estrelas e constelações carregam nomes árabes.
E, a partir do século IX, sob patrocínio do califado (e no interior de uma instituição oficial, a “casa da sabedoria”), a filosofia grega, com destaque para Aristóteles, é traduzida ao árabe. Esse fato é de capital importância, não só para a cultura islâmica como também para a ocidental, uma vez que foi a partir das traduções árabes divulgadas na Península Ibérica que os europeus retomaram o contato com a filosofia grega, então quase desconhecida, fato que teve notável influência sobre o Renascimento europeu.
Enfim, seria cansativo aqui enfileirar todas as realizações alcançadas durante os cinco séculos em que governaram os abássidas. O livro das 1001 noites, elaborado após a devastação de Bagdá, pode também ser lido como registro saudosista e obviamente fantasioso do período áureo da cidade.
A queda de Bagdá foi um sinal. Árabes e muçulmanos, então, encontravam-se cercados: do lado ocidental, os cruzados europeus; do oriental, os mongóis. Endurecidos, finalmente uniram forças e derrotaram ambos os inimigos. Essas vitórias foram, contudo, o canto de cisne daquela civilização. Nunca mais os árabes reassumiriam papel predominante na história da humanidade. Em suas próprias terras, passaram a sofrer o domínio dos turcos. No Egito, um grupo estrangeiro, curiosamente uma casta de escravos, os mamelucos, acaba tomando as rédeas do poder. Em 1492, outra catástrofe: Granada, o último estado árabe da Península Ibérica, é conquistado pelos reis cristãos de Aragão e Castela. Terminavam oitocentos anos de autonomia política muçulmana em al-Andalus. Por volta dessa época, os muçulmanos e sobretudo  os árabes mergulham numa terrível fase de decadência, da qual  somente começaram a emergir, ainda que parcialmente, no final do século XVIII. Mas suas realizações ao longo da história, mais do que simples memória, constituem para eles, de igual modo, tanto a certeza de que nada é definitivo  como a esperança de dias melhores.
“UM BRASIL DAS ARÁBIAS”
A influência dos árabes e dos muçulmanos no Brasil pode ser pensada, basicamente, a partir de três linhas principais: pela herança árabe de Portugal; pelos escravos muçulmanos trazidos ao Brasil; e pela imigração árabe, em especial sírio-libanesa, que começa em finais do século XIX.
1) Em 711, os muçulmanos entraram na Península Ibérica, e ali permaneceram, com poder político, até 1492, e, sob total domínio cristão, até 1608, pelo menos. Assim, ora como dominadores, ora como dominados, interagiram com os povos da península durante novecentos anos. O resquício mais evidente dessa convivência é o grande número de palavras árabes no português e, sobretudo, no espanhol. Como exemplo, citemos algumas poucas: alface, guitarra, oxalá, até, Altair, Leila, Fátima, caramba, alvará, atabaque, zero, algarismo, álgebra, álcool, almirante, alcaide, ulemá, melancia, arroz, marfim, alfaiate, berinjela, aluguel, tambor, gazela, taça, almoxarifado, alfândega, mameluco, azeitona.
Existe igualmente a questão, ainda controversa, das relações entre a poesia árabe e a poesia ibérica. E não se deve esquecer que o estágio relativamente avançado de navegação em que Portugal e Espanha se encontravam deve-se ao conhecimento adquirido dos muçulmanos.
2) Embora, na maioria das vezes, tenham sido obrigados a adotar o cristianismo, os escravos muçulmanos trazidos ao Brasil mantinham muitas das práticas islâmicas, que acabavam se misturando às cristãs. Ainda não se definiu ao certo, no chamado sincretismo religioso da Bahia, por exemplo, quais são os elementos trazidos pelos negros muçulmanos e quais os elementos trazidos pelos negros animistas. O certo é que a presença de escravos muçulmanos, em todo o Brasil e sobretudo na Bahia, era intensa. Em 1835, a revolta dos negros muçulmanos, conhecidos como malês, deixou as autoridades baianas em polvorosa e desencadeou medidas repressivas contra os muçulmanos em todo o Brasil.
3) No início do século XX, a imprensa e a literatura árabe floresceram no Brasil, cultivadas pelos imigrantes recém-chegados do Oriente Médio: havia vários jornais em árabe, gráficas que publicavam nessa língua e escritores que aqui se exilaram e aqui produziam poesia e prosa de excelente qualidade.
Os árabes se destacaram como comerciantes, além de introduzir novos hábitos culinários que se incorporaram à cozinha brasileira mais tradicional.
Preocuparam-se sobremaneira com a medicina. Entre seus descendentes também encontramos intelectuais, políticos e artistas de renome. Entre os escritores, mencionem-se: Jamil Almansur Haddad, crítico, tradutor e poeta; Jorge Medauar, escritor; Tárik de Souza, crítico musical; Mário Chamie, poeta; Raduan Nassar e Milton Hatoum, dois dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, cujas obras (Lavoura Arcaica, Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, este último já traduzido ao árabe) tematizam e problematizam a imigração árabe ao Brasil.
“CARAVANA DE PRECONCEITOS”
Apesar de sua marcante presença no Brasil, a cultura árabe ainda é pouco conhecida entre nós. Além disso, muitas vezes os assuntos relacionados aos países árabes e à cultura islâmica são retratados de maneira estereotipada e preconceituosa pela imprensa escrita e pela televisão.
Leia atentamente o texto abaixo, escrito pelo intelectual palestino Edward Said. Após debater a questão com colegas e professores, pesquise em jornais, revistas e filmes o modo como os árabes são, em geral, retratados.
Em seguida, resuma suas conclusões em uma breve dissertação.
“Nos filmes e na televisão, o árabe é associado à libidinagem ou à desonestidade sedenta de sangue. Aparece como um degenerado super-sexuado, capaz, é claro, de intrigas astutamente tortuosas, mas essencialmente sádico, traiçoeiro, baixo. Traficante de escravos, cameleiro, cambista, trapaceiro pitoresco: esses são alguns dos papéis tradicionais do árabe no cinema [...] A maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais.
À espreita, por trás de todas essas imagens, está a ameaça da jihad [guerra santa]. Resultado: um temor de que os árabes tomem conta do mundo” [In: Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, p.291].
Boletim Mundo Ano 11 n° 1

GEOGRAFIAS DO PETRÓLEO

Regina Araújo
No que se refere à matriz energética, o século XX ainda não acabou. O petróleo, que revolucionou a economia mundial no século passado, continua sendo a principal fonte de energia do planeta: junto com o gás natural, responde por quase 60% do consumo energético global.
A história do petróleo está estreitamente conectada à da marcha dos Estados Unidos rumo à condição de maior potência econômica mundial.
Até 1920, os Estados Unidos concentravam quase toda a produção e o consumo de petróleo . Na década de 50, pela primeira vez, a produção interna tornou-se insuficiente para abastecer o consumo americano. No início da década de 70 a produção americana entrou em declínio e os Estados Unidos tornaram-se o maior importador mundial, passando a encarar o Golfo Pérsico como área estratégica associada à segurança nacional.
O longo reinado do petróleo imprimiu suas marcas em diferentes escalas do espaço geográfico.
Afinal, a tecnologia já centenária do motor a combustão interna, impulsionado pela explosão de óleo diesel ou gasolina dentro de um cilindro, movimenta não apenas caminhões e automóveis mas também barcos e aeronaves e, portanto, continua a desempenhar a função crucial na logística de transportes das sociedades modernas.
Na escala nacional, o caso brasileiro é extremo, mas ilustrativo: a política de transportes, fundamental para a integração do espaço econômico nacional, foi consolidada na década de 50, exatamente no contexto da criação da Petrobrás e do crescimento da indústria automobilística. Como resultado dessa opção, atualmente mais de 60% de toda a carga que circula pelo país é transportada por rodovias. No Brasil, a geografia do petróleo conectou as diferentes regiões e re-configurou as relações entre elas. Mas acabou por se tornar um obstáculo para a inserção competitiva das mercadorias brasileiras no mercado mundial, dado o custo nelas incorporados pelos longos trajetos dos caminhões de carga.
Na escala das cidades, a geografia do petróleo é tributária dos automóveis, que revolucionaram as formas de organização do espaço urbano.
Nos países europeus, por exemplo, o traçado urbanístico de centenas de cidades medievais teve que ser drasticamente alterado para abrir espaço para os automóveis. Em diversas regiões do planeta  inclusive no Brasil  a expansão horizontal das cidades e o surgimento de zonas residenciais afastadas das regiões centrais foram condicionadas pela disseminação do uso de automóveis particulares.
Nos Estados Unidos, as vias expressas que ligam os subúrbios residenciais de alta renda com o centro das metrópoles, em muitos casos transformados em zonas degradadas e ocupadas pelos imigrantes, materializam um padrão urbano criado em função do automóvel. E a lógica perversa dos automóveis continua assombrando os habitantes das grandes cidades: mesmo quando dotadas de infra-estruturas de circulação modernas e sofisticadas, as metrópoles estão cada vez mais sujeitas a infernais congestionamentos de tráfego e à poluição do ar causada pelos gases de escapamento.
Entretanto, além de sua inegável importância como fonte primária de combustível para os transportes e para a geração de calor em fornos e caldeiras industriais, o petróleo também serve de matéria-prima para um dos mais importantes setores industriais da atualidade: a indústria petroquímica.
Consolidado apenas na década de 30, com o desenvolvimento da tecnologia para a fabricação das primeiras resinas plásticas, o setor petroquímico se transformou em fonte de matérias-primas para a maior parte dos artigos de consumo comercializados no mundo. Porém, trata-se de um setor que exige grandes investimentos tecnológicos e, por isso mesmo, é fortemente dominado pelas grandes potências econômicas. Juntos, os Estados Unidos, o Japão e Alemanha respondem por quase metade da produção petroquímica básica mundial.
Nas indústrias petroquímicas, as moléculas de hidrocarbonetos presentes na nafta  um derivado do petróleo  ou do gás natural são quebradas e recombinadas de forma a se transformar em diversos produtos, utilizados por vários setores industriais. O petróleo está presente em embalagens,  pneus, tintas, tubulações, brinquedos, sapatos, tecidos sintéticos, insumos agrícolas, remédios e em todos os produtos de plástico. Os mais diferentes materiais descartáveis  de copos de refrigerantes até luvas cirúrgicas e bolsas para armazenamento de sangue  também são produzidos a partir da transformação química da nafta.
A geografia do petróleo comandada pelas  atividade petroquímica se materializa por meio de três grandes gerações (ou estágios) da cadeia produtiva do setor.
A primeira geração é constituída pelas indústrias que fornecem os produtos petroquímicos básicos, tais com
o eteno e o propeno. Nas indústrias da segunda geração, esses produtos básicos são transformados em produtos petroquímicos finais, tais como o polietileno, o polovinilcloreto (mais conhecido como PVC) e os poliésteres, utilizados pela indústria de confecções. Apenas nas indústrias de terceira geração é que são produzidas as mercadorias prontas para o consumo.
As duas primeiras gerações, isso é, a produção petroquímica básica e a final, tendem a se concentrar no espaço: na maior parte dos casos, junto às refinarias que fornecem a nafta ou o gás natural.
A existência de grandes pólos petroquímicos  expressa essa tendência concentradora. Nos pólos, as empresas compartilham serviços básicos de infra-estrutura e abastecimento, além de se interligarem fisicamente para facilitar as trocas de matérias primas e produtos. Já o terceiro estágio, no qual a indústria de plástico exerce incontestável liderança, geralmente é atraída pelos grandes mercados consumidores.
O Brasil conta com três importantes pólos petroquímicos, todos nucleados por refinarias da Petrobrás: o pólo paulista, na região do ABC; o pólo do Rio Grande do Sul, em Triunfo, e o pólo da Bahia, em Camaçari, que é responsável por mais de 15% do PIB estadual. Eles abrigam a maior parte das empresas de primeira e de segunda geração instaladas no país que, juntas, respondem por cerca de 3% da produção mundial de insumos petroquímicos básicos e finais.
O petróleo foi a maior e mais importante novidade tecnológica do século XX. Além da revolução que operou nos sistemas de geração de energia e de transportes, o óleo forneceu as matérias-primas que alimentam o padrão e os hábitos de consumo característico das sociedades modernas e influenciou fortemente a geografia de países, centros urbanos e distritos industriais. Ao que tudo indica, se depender dele, o século XX ainda vai durar por, pelo menos, mais alguns decênios.
Boletim Mundo Ano 11 n° 1

ARÁBIA SAUDITA E TURQUIA SÃO PEÇAS-CHAVE NA POLÍTICA AMERICANA

Centro da civilização árabe e do Islã, o Oriente Médio é foco de conflitos amplificados pelo valor das reservas de petróleo do Golfo Pérsico.
A situação geográfica peculiar – uma espécie de elo entre Ocidente e Oriente  conferiu ao Oriente Médio, desde a Antiguidade, grande valor estratégico. A descoberta, no final do século XX, de imensas jazidas de petróleo e gás natural no Golfo Pérsico, acentuou ainda mais a sua importância geopolítica. As crises no Oriente Médio têm, inevitavelmente, repercussões de caráter global.
A região abrange os 14 Estados situados entre os mares Vermelho, Mediterrâneo, Negro, Cáspio, Arábico e o Golfo Pérsico. O predomínio da religião islâmica e da cultura árabe caracteriza,  cultural e historicamente o Oriente Médio. Os árabes constituem a imensa maioria das populações da Síria, Iraque, Jordânia e dos países localizados na Península Arábica. Também predominam nos territórios palestinos ocupados por Israel. Aparecem, como minorias étnicas, na porção ocidental do Irã (província do Huzistão) e em Israel. Apesar de serem maioria em 11 países da macrorregião, a população árabe corresponde a pouco menos de metade do efetivo total.
Entre os povos não-árabes, os mais numerosos são o turco, o persa, o judeu e o curdo. Os três primeiros estão presentes de forma quase exclusiva na Turquia, Irã e Israel, respectivamente. Já os curdos – uma comunidade formada por cerca de 25 milhões de indivíduos – se espalham por territórios de cinco países: Turquia (onde vive cerca de metade dos integrantes desse grupo), Iraque, Irã, Síria e Armênia. Os curdos formam o maior grupo étnico do mundo que não possui território nacional.
A religião islâmica é o principal traço cultural do Oriente Médio. Na Turquia, no Irã e em quase todos os países árabes, mais de 90% da população segue a religião fundada por Maomé no século VII. As exceções são o Líbano e a Síria, mas mesmo nesses países os adeptos do islamismo constituem bem mais da metade da população. O único país em que os muçulmanos são minoria é Israel, onde não chegam a um quinto da população.
O Islã está dividido em diversas vertentes. A principal fronteira é a que separa os muçulmanos de rito sunita dos que seguem o rito xiita. Os sunitas correspondem a, aproximadamente, 80% dos muçulmanos. Os xiitas correspondem a cerca  de 15% dos muçulmanos e são majoritários apenas no Irã (quase 90% da população), Iraque (55%), Iêmen e Líbano. Desde a revolução islâmica de 1979, o Irã tornou-se um Estado governado pelo alto clero xiita.
As relações entre o poder político e a religião são bastante variadas no mundo islâmico. A Arábia Saudita e o Irã constituem exemplos, muito diferentes entre si, de Estados regidos por leis islâmicas. Por outro lado, Iraque, Síria, Líbano e Turquia são Estados que separam nitidamente as esferas da política e da religião.
Entre os cinco países que fazem fronteira com o Iraque, Arábia Saudita e Turquia desempenham papéis cruciais nas estratégias dos Estados Unidos para o Oriente Médio. A Arábia Saudita se destaca por possuir as maiores reservas conhecidas e ser o maior exportador de petróleo do mundo. O Estado saudita também abriga os dois lugares mais santos do Islã – as cidades de Meca e Medina.
Desde as primeiras décadas do século XX, a monarquia saudita acalenta os objetivos geopolíticos de obter acesso ao Oceano Índico (às custas de Omã e do Iêmen), controlar os pequenos emirados do Golfo Pérsico (que os sauditas classificam, corretamente, como criações artificiais do colonialismo britânico) e conter os ímpetos expansionistas de dois vizinhos poderosos: o Irã e o Iraque.
Durante a segunda metade do século XX, a monarquia saudita se apoiou nos Estados Unidos. Essa aliança contribuiu para manter a estabilidade regional e, indiretamente, para preservar o próprio regime monárquico. Todavia, as relações entre o Estado saudita e os Estados Unidos foram estremecidas pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Os atentados e a “guerra ao terror” deflagrada por Bush evidenciaram os limites do jogo duplo da monarquia, que acoberta o financiamento privado de organizações islâmica anti-ocidentais .
A Turquia contemporânea é fruto da desagregação do Império Turco- Otomano, no final da Primeira Guerra Mundial (1914-18). O Estado turco é um  nexo geográfico entre a Europa e o Oriente Médio. Os tratados internacionais da década de 20 atribuíram à Turquia o controle sobre os estreitos de Bósforo e Dardanelos, que conectam os mares Mediterrâneo e Negro.
Do ponto de vista dos Estados Unidos, a Turquia  único Estado de maioria muçulmana que pertence à OTAN – é aliado de importância fundamental para a estabilidade do Mediterrâneo oriental e do Oriente Médio. Não é casual que Washington exerça pressão crescente sobre a União Européia pela admissão da Turquia no bloco europeu.
O Estado turco teme, mais que qualquer outra coisa, o movimento nacional curdo. Os curdos formam cerca de um quinto da população do país e a bandeira de um Curdistão independente representa uma ameaça para a integridade territorial da Turquia. O governo turco colocou uma condição básica para o uso das bases da OTAN situadas em seu território na campanha contra o Iraque: a garantia da manutenção da unidade iraquiana. Ou, em outras palavras, a contenção do separatismo dos curdos que habitam o norte do Iraque.
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REFORMA PREVIDENCIÁRIA SERVE AO CAPITAL FINANCEIRO

Serge Goulart
O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, declarou no seu discurso de posse que “a reforma da Previdência Pública tem como objetivo garantir nosso compromisso com o ajuste das contas públicas, não apenas no presente mas também no futuro”. Um dos principais argumentos usados é o envelhecimento da população e a relação entre contribuintes e aposentados.
Mas esse argumento não se sustenta. É utilizado apenas para “vender” para a opinião pública a privatização da Previdência, com os objetivos de pagar a dívida externa e permitir ao mercado financeiro apropriar-se de mais de 670 bilhões de reais até 2010.
Todos os privatizadores da previdência usam um gráfico no qual comparam a pirâmide etária típica dos países subdesenvolvidos (base larga, topo estreito) com a dos países desenvolvidos (mais ou menos em forma de barril), para dizer que “antes era assim” e “agora está ficando assim”. Ou seja: logo haveria apenas um jovem para cada idoso.
Mas, segundo dados do IBGE para o ano 2000, o Brasil tem uma taxa de crescimento anual da população na ordem de 1,64%. E a população com 65 anos ou mais representa apenas 5,85% do total. Em todos os países desenvolvidos a taxa de crescimento populacional é muito menor, chegando a ser negativa na Itália e Espanha. E os idosos, em países desenvolvidos, são cerca de 15% da população . Ou seja, estamos muito longe do falso barril dos privatizadores.
Até o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, defensor da reforma da Previdência, afirma: “Muitos países têm problemas com a previdência, quase todos em razão do envelhecimento da população.
Não é bem o nosso caso, e não o será ainda por um bom tempo. Pouco mais de 8% de nossa população é de idosos, enquanto essa proporção é superior a 20% no mundo desenvolvido. Segundo o IBGE, vamos chegar a esse patamar, mantidas as atuais tendências demográficas, apenas em 2050. Portanto,  nosso problema previdenciário não tem propriamente a ver com demografia, mas com sociologia ou, mais precisamente, com privilégio.”
Como ficam os argumentos demográficos dos privatizadores diante dos dados oficiais do INSS, que declara que seus segurados se aposentam em média com 49,6 anos e morrem em média com 60,3 anos (homens) e 56,9 anos (mulheres)? Além disso, após 2050, e nos próximos séculos, espera-se que a produtividade do trabalho e a riqueza socialmente produzida sejam capazes de sustentar os idosos da sociedade. E não jogá-los fora como laranja chupada, crueldade nunca vista antes nem mesmo em sociedades bárbaras. No passado, os idosos, vistos como fonte de sabedoria, sempre tiveram o respeito das sociedades. Hoje, numa época em que a riqueza global não cessa de aumentar, como admitir abandonar os idosos à própria sorte?
Outro argumento utilizado para apavorar a opinião pública é a relação entre ativos contribuintes e inativos.
Num sistema previdenciário como o nosso – baseado no regime histórico de repartição simples e solidariedade entre gerações – a relação necessária é de cerca  de 3,5 contribuintes para um aposentado. O governo alega que, no Brasil, a proporção é de dois ativos contribuintes para cada aposentado. Ora, no Brasil a proporção entre ativos e inativos é de cerca de 4,7 para um – a mesma dos Estados Unidos. Acontece que, no Brasil, só dois ativos contribuem para a previdência, porque o governo empurrou para a informalidade milhões de trabalhadores através de leis de precarização e  flexibilização do trabalho. Basta dizer que são cerca de 45 milhões de trabalhadores que sofrem com a informalidade das relações de trabalho, vivendo quase sem nenhuma proteção social.
No serviço público, o problema é ainda mais gritante. Em 1990, o Brasil tinha 146 milhões de habitantes e 750 mil servidores federais (ou seja, um servidor federal para cada 195 habitantes). Hoje o Brasil tem 175 milhões de habitantes e apenas 457.756 servidores (um servidor para 382 habitantes). Para conservar o padrão de serviço de 1990, deveria ter, pelo menos, 900 mil servidores federais. Porém, sem uma mudança de rumos, os servidores serão reduzidos a 38.783 no ano 2030, conforme se deduz de estudos do Ministério da Previdência (Probus, Avaliação dos Compromissos Previdenciais da União, abril de 2001).
A grande questão, do ponto de vista do capital financeiro, é quebrar o regime previdenciário de repartição simples e solidariedade entre gerações, pelo qual as contribuições previdenciárias arrecadadas são imediatamente revertidas para os aposentados. A quebra desse regime implicaria a eliminação da aposentadoria integral dos servidores, através do estabelecimento de um teto máximo para os benefícios previdenciários.
No lugar do sistema atual, seria criado um regime único para servidores e trabalhadores do setor privado, no qual a previdência complementar funcionaria como caminho obrigatório para a tentativa de obtenção de aposentadorias superiores ao teto oficial. Depois, através do arrocho e diminuição do valor do teto, a massa de servidores seria atirada pelas bordas, para que caia nos braços da previdência privada por capitalização.
O significado social de tudo isso é evidente. Além disso, o plano é uma ruptura dos contratos feitos com o povo e com os servidores, a quem foi garantido que, trabalhando 35 anos, se aposentariam com salário integral.
BRASIL AINDA É “PAÍS JOVEM”
Nos países desenvolvidos, a taxa de crescimento vegetativo experimentou redução acentuada, desde as primeiras décadas do século XX. O reflexo das baixas taxas de natalidade e elevadas expectativas de vida aparece na estrutura etária: os idosos – no critério demográfico clássico, os que têm 60 anos ou mais – representam cerca de um quinto da população. Na Europa, o fenômeno do envelhecimento da população é ainda mais acentuado que nos Estados Unidos pois a natalidade é menor e os fluxos imigratórios são menos intensos.
Do ponto de vista da discussão previdenciária, mais relevante que usar o corte etário dos 60 anos é usar o dos 65 anos. Esse critério revela com nitidez que, apesar da recente queda acentuada das taxas de natalidade, o Brasil ainda é um “país jovem”. Mesmo se comparado à vizinha Argentina.
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REFORMA DA PREVIDÊNCIA INAUGURA MUDANÇAS DO GOVERNO LULA

A eleição de Luís Inácio Lula da Silva constitui marco histórico. Pela primeira vez, o Brasil tem um governo de esquerda, apoiado num partido – o PT – que surgiu das lutas operárias. Em tese, todo o modelo econômico e social brasileiro pode sofrer mudanças estruturais. Sob o selo “Brasil em debate”,  vai discutir a postura do governo Lula diante das questões nacionais. Começamos com a reforma previdenciária, anunciada pelo governo como o primeiro grande projeto a ser enviado ao Congresso.
Solicitamos uma matéria ou entrevista ao ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, e uma crítica à proposta do governo. A crítica aparece à pág. 5. O Ministério da Previdência não produziu matéria nem concedeu entrevista. Assim, nesta página, sintetizamos a proposta governamental.
Ao assumir o governo, o presidente Lula recebeu, junto com a faixa verde-amarela, um polpudo abacaxi: a crise da previdência social. O déficit da previdência bateu em R$ 72 bilhões no ano passado; três quartos do total referem-se ao prejuízo com pensões de funcionários públicos (incluindo militares, juízes e aposentados do Legislativo). Em 1995, o déficit total era de R$ 19,6 bilhões.
A expectativa é que o rombo fique em R$ 80 bilhões este ano; só na última década o buraco somou R$ 350 bilhões, pouco menos da metade do PIB brasileiro.
Mantido o ritmo atual, em dez anos o pagamento de pensões inviabilizaria qualquer governo.
Parte do problema não é exclusivo do Brasil. A melhoria da qualidade de vida vem garantindo uma sobrevida maior às pessoas – em conseqüência, cresce o tempo das pensões a serem pagas. A globalização e o aumento do desemprego estrutural também reduziram a fatia de contribuintes na ativa. Nos anos 70, para cada brasileiro aposentado, havia sete trabalhando. A proporção hoje é de menos de dois trabalhadores para um.
E a Constituição de 1988, ao estender o pagamento da aposentadoria a todo homem com mais de 65 anos e a toda mulher que ultrapassa os 60 anos, incorporou à previdência mais de cinco milhões de trabalhadores rurais que nunca haviam contribuído para o sistema.
Contudo, a história do rombo na previdência é mais complicada e envolve inúmeros casos de fraude e corrupção, além do uso indevido de fundos da previdência (por exemplo, na construção de Brasília ou da rodovia Transamazônica). De acordo com dados oficiais, a previdência não sofreria de nenhum déficit caso impostos criados para essa finalidade – como, em especial, o Cofins – não fossem desviados em direção a outros gastos . O que mais choca é o desequilíbrio na atribuição de benefícios. A aposentadoria média dos trabalhadores da iniciativa privada é de apenas R$ 340,00  (30% dos aposentados brasileiros continuam trabalhando...), contra R$ 2.200,00 dos funcionários públicos, R$ 7.000,00 do Legislativo e R$ 7.300,00 do Judiciário.
Trabalhadores rurais aposentados recebem, em média, apenas R$ 200,00 ao mês.
O eixo da proposta de reforma previdenciária do governo Lula é unificar o teto de pagamento de benefícios ao redor do máximo pago hoje pelo INSS aos aposentados da iniciativa privada (R$ 1.562,00) e, aos poucos, ir reduzindo o déficit. Interessados em receber benefícios maiores contribuiriam para fundos de pensão, à semelhança do Petros (dos funcionários da Petrobrás), ou ainda para fundos privados, como os PGBLs e VGBLs.
De quebra, os fundos, capitalizados pelas contribuições de empresários e empregados, se transformariam em grandes investidores, alavancando o desenvolvimento da economia e reduzindo a necessidade de capitais externos.
Com isso, o país estaria também menos sujeito às mudanças nos ventos das finanças internacionais.
A proposta governamental provocou uma onda de críticas vindas de associações e sindicatos de servidores públicos, parlamentares, comandantes  militares e juízes, que seriam os mais prejudicados. Eles alegam ter direito adquirido. Governadores e prefeitos também torceram o nariz. Isso porque o teto unificado e a incorporação dos servidores públicos ao INSS representariam o fim de uma receita importante: os 11% do salário de cada funcionário que são descontados para bancar a previdência de estados e municípios. A União, os estados e municípios também teriam de injetar dinheiro nos novos fundos de pensão.
Depois do primeiro impacto, o governo ensaiou um recuo parcial. Decidiu aprovar uma mini-reforma previdenciária proposta por FHC, que já tramitava no Congresso, e complementá-la mais tarde com um projeto a ser aprovado no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Assim, a unificação do teto de pagamento de benefícios só deve ocorrer para quem está entrando agora no sistema; a reforma estaria completa, então, apenas no ano 2038. Enquanto isso, haveria  uma regra de transição, chamada de fator previdenciário. O prazo para que o servidor público se aposente com salário integral – que era de dez anos de funcionalismo e de cinco anos no cargo – seria estendido, por exemplo, a 20 e dez anos, respectivamente.
Isso ampliaria o prazo de contribuição, dando a estados e municípios as condições de se adaptar gradualmente.
MUDANÇA GLOBAL
Cerca de 150 países contam com sistemas de previdência social. O primeiro modelo “moderno” de pagamento de aposentadorias em nível nacional foi criado pelo chanceler alemão Otto Von Bismarck, na segunda metade do século XIX. Mas o grande salto ocorreu após a Primeira Guerra (1914-1918), quando diversos governos europeus, temendo o socialismo – vitorioso na Rússia, em 1917 – implantaram seus sistemas previdenciários.
Privatização e redução de benefícios vêm marcando o rumo da previdência em todo o mundo, nas últimas duas décadas. Hoje, os modelos mais generosos são os da Alemanha, Holanda e Suécia, onde a aposentadoria é de 70% a 75% sobre o último salário. Mesmo nesses países, o envelhecimento da população, a redução da capacidade de investimento do Estado e o avanço do desemprego vêm forçando mudanças. O rombo mundial das previdências públicas anda pela casa dos US$ 30 trilhões.
O governo social-democrata alemão, por exemplo, estuda formas de reduzir o salário-desemprego, tão atraente que faz com que muita gente desista de procurar trabalho. As aposentadorias médias do funcionalismo público na Europa oscilam de 40% sobre o último salário (Irlanda), a 100% (Espanha).
Nos anos 70, o governo ultra-liberal de Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, privatizou a previdência, atualmente a cargo de fundos de investimento. Thatcher e Reagan também reduziram os entraves à ação desses fundos, que hoje estão entre os maiores investidores de curto prazo em todo o mundo.
A dobradinha Thatcher/Reagan tomou como base a privatização empreendida, na marra, no Chile de Augusto Pinochet. Os fundos de pensão chilenos tornaram-se grandes investidores na privatização de estatais em outros países latino-americanos. Mas a credibilidade do sistema foi abalada pela quebra de uma importante seguradora, nos anos 90. Na América Latina, também privatizaram seus sistemas previdenciários – em diferentes medidas – Argentina, México, Colômbia e Peru.
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COM O TIA, BUSH MATERIALIZA A SÁTIRA DO “BIG BROTHER

Newton Carlos
Imagine-se às voltas com algum tipo de praga que exija a compra de agentes químicos. A operação, feita por meios eletrônicos, como muitos milhões de outras, é levantada em varredura executada permanentemente por instrumentos de alta tecnologia (computadores de última geração, etc.) de agência do governo. Em conseqüência, você pode ser investigado, em “ação preventiva”, na condição de terrorista em potencial. O mesmo pode resultar da verificação do uso de cartão de crédito mostrando assiduidade a mesquitas ou restaurantes árabes, sobretudo em se tratando de ocidental.
Ficção científica? Só aos poucos o mundo fica conhecendo a montagem de um programa que se abriga no Darpa, a Agência de Pesquisas de Projetos Avançados de Defesa, criadora da Internet. Conta com parcelas de verbas bilionárias do Pentágono, cujo orçamento já se aproxima da marca de um bilhão de dólares por dia.
O programa é o TIA, sigla em inglês do Total Intelligence Awareness. Pode ser traduzido como “conhecimento total de informações”. A ambição é criar algo que saiba de tudo a todo momento. Trata-se de sistema experimental que vem sendo desenvolvido pelo Pentágono com o objetivo de “pescar” informações em bilhões de transações eletrônicas diárias, analisá-las e flagrar atividades suspeitas, tornando-as possíveis focos de investigações.
Entidades de defesa dos direitos civis e parlamentares – não só democratas, da oposição, mas também republicanos “moderados” – dizem que o TIA torna realidade o “Big Brother”, o grande irmão do célebre livro (e filme) “1984”. Na sátira de George Orwell, o “Big Brother” tudo vê, tudo ouve e tudo controla. Os idealizadores do TIA escolheram como lema a frase, em latim, pregada em sua porta principal num dos corredores do Pentágono: “Scientia Est Potentia”. Conhecimento é poder.
A introdução do TIA parte da avaliação de que a “a guerra contra o terror”, em primeiro lugar, exige que autoridades federais espionem todos e cada um dos americanos ou residentes no país. A estratégia consiste no uso das vias eletrônicas de informações. Parte substancial dos recursos do projeto se destina a pesquisas que aperfeiçoem os instrumentos de espionagem eletrônica, de modo a, algum dia, alcançar 100% de eficiência.
Um formidável computador central – a cabeça do “Big Brother” – é instalado. O sistema em sua totalidade será composto por uma rede de computadores, ativada através de um sofisticado e ultra-secreto software.
Uma gigantesca rede de vídeo em circuito fechado revistará cada canto, por mais disfarçado ou escondido que esteja, da vida das pessoas. É o fim da privacidade.
Essa rede, quando montada por inteiro, registrará e cruzará informações sobre tudo o que disserem,  escreverem ou fizerem americanos e residentes no país.
Saberá o que compram ou comem, para onde viajam, o que lêem, como se divertem, quanto depositam em suas contas bancárias ou retiram delas, com quem falam por telefone ou e-mail e muitas outras atividades. Isso será possível por meio do rastreamento eletrônico de cartões de crédito, ligações telefônicas, etc. Deixam de existir os espaços nos quais os cidadãos gerem suas vidas livres da bisbilhotice alheia. Um monumental banco de dados será atualizado a cada segundo, 24 horas por dia, por olhos eletrônicos que não dormem.
O “Big Brother” do governo Bush bate de frente com a Lei de Privacidade de 1974. O TIA ainda não foi concluído, testado em definitivo ou mesmo colocado em prática – o que oferece tempo e oportunidade para propor mudanças na legislação vigente. Mas sua implementação não é tão complicada, já que ele funcionaria como um imenso integrador dos já existentes Customer Relationship Managements (CRMs), os sistemas  informatizados que monitoram as preferências  do consumidor, orientando melhor as campanhas de marketing das empresas.
Bush confia na cobertura da maioria republicana no Congresso para legitimar o TIA. Mas a esperança de opositores é que a própria discussão de um projeto de “legalização” do programa fortaleça as desconfianças.
Quando o debate começar, entrará em cena aberta a figura controvertida do almirante John Poindexter, idealizador e construtor do TIA.
Poindexter foi assessor de segurança nacional do ex-presidente Ronald Reagan, nos anos 80, e andou envolvido no escândalo Irã-Contras, as compras ilegais de armas para os que combatiam o regime sandinista da Nicarágua. Foi condenado por diversos delitos: mentiras em depoimentos ao Congresso, obstrução de trabalhos parlamentares, destruição de documentos, etc. Só escapou da prisão porque filigranas jurídicas conseguiram invalidar a sentença.
Computadores sempre foram os objetos prediletos de Poindexter. “Trata-se de um tecnocrata envolvido com manipulação de informações”, diz o historiador militar John Prados, do National Security Archives. Depois do final do governo Reagan, trabalhou como consultor na área de computação (não por acaso, em uma empresa que produz CRMs) e agora propõe o que chama de “solução tecnológica para a ameaça terrorista”. Segundo o jornal The Washington Post, crítico do programa, conduzi-lo “jamais deveria estar nas mãos de Poindexer”. Mas o Pentágono, escreveu o The New York Times, está cheio de gente que aceita totalmente suas idéias.
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quarta-feira, 30 de março de 2011

SÃO PAULO, O CIRCUITO DE UM SÍMBOLO

Nicolau Sevcenko
Prefeitura retorna ao ponto de origem, no Viaduto do Chá, depois de circular pelo Ibirapuera e Parque Dom Pedro. Há uma narrativa simbólica escondida atrás do giro da sede do poder municipal.
Numa cidade como São Paulo, que tradicionalmente foi a sede do governo da província ou do estado, e da Câmara dos Deputados, a Prefeitura nunca foi uma real necessidade. Aqueles dois órgãos se encarregavam de providenciar os reparos e obras indispensáveis para a vida de uma cidadezinha singela e pacata.
Porque, até que a capital começasse a receber o impacto da riqueza proveniente da cafeicultura, em meados do século XIX, ela permanecia sendo pouco mais do que o vilarejo criado ao redor do colégio dos jesuítas.
Como não tinha atividades econômicas próprias, São Paulo constituía um povoado mirrado e muito pobre. Durante longo tempo, a atividade predominante dos paulistas era o apresamento e venda dos indígenas como escravos. Foi assim que os paulistas se espalharam pelos sertões, fundando outras povoações por onde passavam. A capital era, portanto, um centro exportador e irradiador de gentes. Dentro da cidade propriamente dita, ficavam sobretudo as mulheres com seus filhos que, um dia, ao se tornarem adultos e ante a falta de alternativas, também haveriam de partir.
Como a atividade cafeeira era dominada por financiadores ingleses, e como eles é que planejaram a implantação da grande rede ferroviária indispensável para o escoamento da produção, fizeram questão de fazer convergir toda a malha de transporte para a cidade de São Paulo. A vantagem é que, assim, poderiam controlar os estoques, descendo as sacas do produto aos poucos para o porto exportador de Santos, de modo a manter os preços sempre em alta no mercado internacional.
Beneficiada por essa manobra, a capital viu se concentrar em seu meio, num curto espaço de tempo, uma enorme fortuna, numa época em que São Paulo era responsável pela produção de mais de 75% de todo o café negociado no mundo.
Assim, no rastro de uma manobra especulativa do mercado internacional, a cidade se tornou o maior pólo de prosperidade do país, atraindo gentes de todas as regiões e de todos os pontos do globo, registrando um enorme crescimento demográfico e um processo de metropolitização na passagem do século XIX para o XX. Desde então, e até à década de 60, ela seria, de fato, “a cidade que mais cresce no mundo”. O crescimento excepcional e as enormes demandas que ele impunha à autoridade administrativa levaram à criação da Prefeitura, através de um decreto de 1898.
À essa altura, a cidade já passava por um processo de intensa transformação. Nos seus inícios, a Prefeitura se instalou num dos prédios mais monumentais da cidade, o Palacete Prates, recentemente edificado, à direita do Vale do Anhangabaú, na esquina da rua Quintino Bocaiúva com a praça do Patriarca, exatamente em frente ao local onde hoje fica o prédio Matarazzo do Banespa.
A inauguração do Viaduto do Chá, na sua primeira versão em estrutura metálica, em 1892, estabelecera a ligação da área histórica da capital com a chamada “cidade nova”, em direção à Barão da Itapetininga e praça da República, valorizando enormemente os terrenos em toda a região. Foram então construídos novos prédios, em imponente estilo europeu. O mais notável de todos, o Palacete Prates, imitava o modelo da arquitetura com que eram construídas as Câmaras Municipais francesas. A sede da Prefeitura assinalava assim uma nefasta vocação de convívio íntimo com as artimanhas especulativas.
O predomínio dos interesses especulativos sobre as necessidades da população  o traço sem dúvida mais patético da história de São Paulo levaria a administração da cidade, sempre em conluio com os especuladores, a dotar o seu desenvolvimento de um caráter autofágico. A capital se destrói e se consome a sí mesma, ao ambiente natural e à qualidade de vida de seus habitantes, na medida em que se expande e se transforma, horizontal e verticalmente.
A fatal prioridade concedida aos veículos e ao transporte individual e privado completou o quadro da degradação, tornando a cidade hostil ao invés de acolhedora para os cidadãos.
Um dos primeiros efeitos perversos dessa combinação de práticas especulativas foi a decadência do hoje chamado “centro velho” da cidade. Com as sucessivas remodelações da região ao redor do Vale do Anhangabaú, a Prefeitura, depois de uma breve passagem pela rua Florêncio de Abreu, acabou migrando para o charmoso Parque Ibirapuera, na época da sua inauguração, no contexto da celebração do Quarto Centenário da cidade de São Paulo, em 1954.
O Parque do Ibirapuera consagraria o novo rumo da especulação imobiliária, em direção à zona sul da cidade. A Prefeitura se punha assim em sintonia com esse processo, acentuando o desequilíbrio e a segregação social da vida urbana. Quando, portanto, em 1992, contra forte resistência, a prefeita Luiza Erundina decidiu transferir a sede da administração municipal para o Palácio das Indústrias, no Parque D. Pedro II, sua iniciativa visava deter e reverter essa tendência discriminatória, retornando ao centro histórico da cidade.
O Palácio das Indústrias ademais tinha uma importância simbólica. Ele fora construído em 1920, para sediar a Primeira Exposição da Indústria Paulista. Todos os expositores, sem exceção, eram imigrantes estrangeiros. O palácio representava a ascensão  social de uma nova elite e um novo modelo econômico de base industrial, que desafiavam a velha oligarquia cafeeira encastelada no palacete do Conde Prates. Além disso, ele se voltava, em sua arquitetura eclética e mirabolante, para os bairros populares da zona leste Brás, Pari, Belém, Moóca  onde se concentrava a massa da população operária. O gesto da prefeita Erundina contemplava assim dois objetivos: repor a administração da cidade na perspectiva do seu centro histórico e se debruçar sobre as áreas abandonadas e a parcela mais carente da população.
Com a recente aquisição do prédio do Banespa e a decisão de transferir a Prefeitura para o edifício Matarazzo, Marta Suplicy reitera o impulso de Erundina e praticamente recoloca a municipalidade no seu local de origem. Trata-se, também, de um monumento simbólico. Ele foi construído em 1938-39, pelo brilhante artista italiano Marcelo Piacentini, um dos arquitetos oficiais do regime fascista, sob encomenda do empresário Francesco Matarazzo. De arquitetura moderna, com inspiração românico-medieval e concepção monumental, é uma das maiores construções em travertino romano do mundo. Erguido na embocadura do Viaduto do Chá, seu perfil luminoso de torre e fortaleza se impõe sobre todo contexto panorâmico do vale do Anhangabaú, o principal foco fisionômico da paisagem urbana paulista.
Suas conotações viris e autoritárias são mais do que evidentes. Que ele sugira um princípio de força e intervenção não significa necessariamente um problema. A cidade e os cidadãos realmente carecem de uma ação pública forte que confronte a ganância especulativa, os bastiões do privilégio e a onipotência do transporte privado. De volta às origens, a Prefeitura tem a chance de refazer a sua história.
Dessa vez pelo lado certo.
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UM “CAFEZINHO” POR ALCÂNTARA

José Arbex Jr.
Alcântara, a aproximadamente 60 minutos de barco de São Luiz do Maranhão, é um lugar belíssimo.
Já foi um dos centros mais prósperos da época colonial, habitado por uma alta aristocracia que enviava os filhos para completarem os estudos em Coimbra  como testemunham as ruínas de antigos e imponentes casarões e a praça central, onde ficam o pelourinho e a matriz.
Hoje, Alcântara vive uma tragédia. Para o azar supremo de seus atuais habitantes, a posição geográfica da área  situada a dois graus da linha do Equador é perfeita para o lançamento de foguetes, razão pela qual o Brasil resolveu construir ali uma base espacial, produzindo um desastre social . E também fica na entrada da Amazônia. Resultado: os Estados Unidos cobiçam Alcântara. Ofereceram um acordo ao Brasil: pagamento de 34 milhões de dólares anuais (menos de um cafezinho, para os padrões americanos) pelo aluguel da região. Mas o mais ridículo são os termos do acordo.
Imagine a seguinte situação: um sujeito quer alugar um quarto da sua casa, onde você mora e vive. Propõe, como pagamento pelo aluguel, alguns trocados. Exige, em troca, que você se mantenha bem longe do quarto; que renuncie até mesmo ao direito de sequer perguntar para quê servem algumas misteriosas caixas lacradas que o sujeito já diz, de antemão, que pretende levar para o quarto; proíbe, além disso, que você use o dinheiro do aluguel como bem entenda, ou que, finalmente, alugue outros quartos para outros inquilinos sem autorização prévia do tal fulano. Você toparia?
Parece piada, mas estes são os termos do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas que o governo Fernando Henrique Cardoso assinou com Washington, em maio de 2000. Em troca de um cafezinho, FHC garante a Tio Sam o controle total sobre a base de lançamentos, permite aos Estados Unidos desenvolver programas sigilosos, além de realizar operações sem o conhecimento das autoridades brasileiras. Nos termos do acordo, só as pessoas ligadas ao programa aeroespacial americano poderão circular em Alcântara. Fica expressamente proibido o acesso e a circulação de brasileiros na base, mesmo que sejam parlamentares ou membros do Executivo (incluindo o próprio presidente da república!). Além disso, nenhum material que chegar ou sair da base, de qualquer origem ou destinação, poderá ser sequer tocado por brasileiros.
O acordo também garante a Tio Sam o direito de não comunicar às autoridades brasileiras a natureza ou a data exata em que serão realizadas operações ligadas ao programa aeroespacial americano. E mais: Tio Sam exige que o dinheiro do aluguel não seja investido no programa aeroespacial brasileiro e que o Brasil não estabeleça parcerias no setor aeroespacial com nenhum outro país sem a sua autorização prévia!
Na prática, o governo está permitindo que os Estados Unidos montem sua primeira base militar no país, com capacidade de controlar estrategicamente a floresta amazônica, como parte de um complexo que inclui suas bases na Bolívia, Colômbia e Equador.
Breve história da base de foguetes
1980 – O governo brasileiro cria o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão; desapropria por decreto uma área de 52 mil hectares, onde viviam cerca de 500 famílias, a maioria descendentes  de quilombolas que sobreviviam de pesca e de agricultura de subsistência.
1990 – A área da base é ampliada para 62 mil hectares.
Maio de 2000 – O governo assina o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com Washington, que garante aos Estados Unidos o direito de usar a base. Por força da Constituição, o acordo precisa da aprovação do Congresso.
2001 – A Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados rejeita o acordo por unanimidade, a partir de um relatório do deputado Waldir Pires (PT-BA), que considera os seus termos lesivos à soberania nacional. Apesar disso, o acordo é aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, com base em parecer do deputado José Rocha (PFL-PA). Cria-se um impasse.
Março de 2002 – O acordo é encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, tendo como relator o deputado Zenaldo Coutinho (PSDB-PA). Após o parecer da comissão, o acordo vai a votação no plenário da Câmara.
Despejo dos quilombolas
A criação do Centro de Lançamento de Alcântara implicou a expulsão de cerca de 500 famílias, descendentes de quilombolas, para agrovilas no interior do Maranhão. Em 1990, o então presidente Fernando Collor de Mello destinou mais 10 mil hectares para a base. Resultado: outras 200 famílias foram para as agrovilas.
Essas “transferências” são de uma violência brutal, não só por terem mudado radicalmente a vida de comunidades inteiras que viviam de pesca típica daquela região específica, mas também pela destruição de patrimônio histórico e cultural preservado pelos quilombolas.
“O governo amontoou nas mesmas agrovilas grupos distintos de pessoas, não respeitando as diferenças culturais”, diz Dorinete Serejo Moraes, do MAB (Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara).
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OS HIDROCARBONETOS, DO GOLFO AO CÁSPIO

Nelson Bacic Olic
Petróleo aparece, para o grande público, quase que como sinônimo de Oriente Médio. A associação não é casual: ao longo do século XX, essa porção do continente asiático tornou-se a maior produtora e exportadora mundial de petróleo, além de detentora das maiores reservas comprovadas do “ouro negro”.
O Oriente Médio abrange uma área de cerca de 5 milhões de km2, pouco mais da metade da superfície brasileira. Contudo, por um “capricho geológico”, o petróleo é encontrado quase que exclusivamente em torno do Golfo Pérsico . A Arábia Saudita, o Iraque, o Irã e as monarquias do Golfo (Kuwait, Qatar, Bahrein e Emirados Árabes Unidos) são responsáveis por cerca de um quarto da produção mundial de petróleo.
Todavia, pouco mais de mil quilômetros ao norte do Golfo Pérsico, na região da Ásia Central, existe uma outra área extremamente promissora em termos de produção de hidrocarbonetos. O núcleo dessa área é o Mar Cáspio. Destacam-se aí a produção petrolífera do Casaquistão e Azerbaijão e a de gás natural no Usbequistão e Turcomenistão. Se, hoje, a produção desses países ainda não é tão expressiva (2% da produção mundial de petróleo e 4% da de gás), as previsões indicam que a extração desses recursos energéticos seja no mínimo triplicada nos próximos vinte anos.
Desde o final do século XIX, a riqueza petrolífera do Mar Cáspio despertava o interesse das grandes potências. Nos idos de 1897, ainda na infância da “era do petróleo”, os campos de Baku, no Império Russo (atual Azerbaijão), eram responsáveis por 45% da produção mundial do “ouro negro”. Em seguida, a região do Cáspio perdeu importância, sendo suplantada por diversas outras áreas produtoras. Na antiga União Soviética, a extração na região do Cáspio foi relegada a segundo plano, em função da descoberta de vastos depósitos de petróleo e gás no Volga/ Ural e na Sibéria. Em 1991, a extração do Cáspio representava apenas 3% da produção soviética. Contudo, a desintegração da União Soviética e o surgimento das repúblicas independentes da Ásia Central e do Cáucaso relançaram o interesse ocidental pelos recursos energéticos da região.
Do ponto de vista geopolítico, configurou-se um “espaço caspiano”, no qual se cruzam os interesses contraditórios de vários Estados, de dentro e de fora da região. Geograficamente, o “espaço caspiano” agrupa Estados ribeirinhos do Mar Cáspio (Azerbaijão, Rússia, Turcomenistão, Casaquistão e Irã), os Estados do Cáucaso (Geórgia, Armênia e Azerbaijão) e repúblicas e regiões autônomas da Rússia caucasiana, como a Chechênia e o Daguestão. Nos últimos anos, é em torno do “espaço caspiano” que se desenrola a corrida pela “nova fronteira” dos hidrocarbonetos.
As antigas repúblicas soviéticas do Azerbaijão, Casaquistão, Turcomenistão e Usbequistão caracterizam-se por serem países muçulmanos e não possuírem acesso direto a mares abertos. O escoamento de seus hidrocarbonetos tem que atravessar territórios estrangeiros.
Por isso, na disputa pela “nova fronteira” caspiana, um dos temas quentes, com amplas repercussões geopolíticas e econômicas, é o traçado dos oleodutos e gasodutos. Antes de 1991, os dutos conduziam hidrocarbonetos das áreas produtoras do Azerbaijão e Casaquistão em direção aos portos de Novorossilsk (Rússia) e Supsa (Geórgia), no Mar Negro. A União Soviética controlava os dutos e os portos.
A independência das repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso abriu caminho para novos projetos de oleodutos e gasodutos. Assim, em direção ao oeste, há projetos de um duto que, partindo do Azerbaijão, atravessaria a Geórgia e a Turquia, chegando ao porto turco de Ceyhan, no Mediterrâneo. A Turquia, observe-se, é um Estado chave no dispositivo estratégico dos Estados Unidos. Os dutos que correm para o oeste cruzam regiões conflitivas na Rússia (Chechênia), na Geórgia e na Turquia.
Outro projeto, em fase de estudos, prevê o escoamento do gás natural do Turcomenistão numa direção geral norte-sul, em duas variantes. A primeira alcançaria o Golfo Pérsico, através do território do Irã. A fraqueza dessa alternativa encontra-se nas incertezas ocidentais sobre o futuro político do Irã. A segunda variante alcançaria o litoral do Paquistão, cruzando o território do Afeganistão. Eis aí um dos grandes incentivos para a “pacificação” do Afeganistão.
Um último projeto, aparentemente pouco exeqüível em função das imensas distâncias envolvidas, prevê dutos ligando áreas produtoras do oeste do Casaquistão a portos da China. Seria um trajeto de mais de 3 mil quilômetros, abrangendo regiões montanhosas e inóspitas.
O Golfo Pérsico, “fronteira de hidrocarbonetos” do início do século XX, é uma área de fácil acesso através dos mares. O Cáspio, “fronteira de hidrocarbonetos” do início do século XXI, apresenta obstáculos geográficos e geopolíticos incomparavelmente maiores.
A origem do petróleo em debate
É uma história clássica. Há milhões de anos, microrganismos marinhos sedimentaram-se no fundo de oceanos e mares. Sob pesadas camadas de sedimentos, sem oxigênio, a matéria orgânica transformou-se lentamente em petróleo e gás natural. Certo?
Errado, segundo o cientista americano J. F. Kenney, que há pouco publicou um artigo na prestigiosa Proceedings of the National Academy of Sciences propondo  uma teoria diferente. O petróleo e o gás natural teriam surgido da mistura de substâncias inorgânicas  água, carbonato de cálcio e óxido de ferro – a temperaturas em torno de 1.500 graus Celsius e pressão de 50 mil atmosferas, no manto superior, 100 quilômetros abaixo da superfície. A tese de Kenney, em versão simplificada, já tinha sido exposta em 1951 por um grupo de cientistas soviéticos. A novidade é que Kenney demonstrou, experimentalmente, que um coquetel de alcanos similar ao que existe no petróleo é gerado por aquela mistura inorgânica, quando submetida às temperaturas e pressões descritas.
O debate já pegou fogo. Os defensores da teoria clássica, que é hegemônica, sustentam que as moléculas do “petróleo inorgânico” se desintegrariam ao subir lentamente para a litosfera. Kenney não tem resposta para isso: no seu experimento, teve que resfriar subitamente o coquetel de alcanos. Por outro lado, a teoria clássica também tem seus furos. O principal, apontado por Kenney, é a aparente impossibilidade termodinâmica de transformação de material orgânico em alcanos sob as temperaturas e pressões relativamente baixas da litosfera. Jogo empatado?
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