sábado, 19 de março de 2011

ESTRATÉGIA DE BUSH OCUPA O LUGAR DA ANTIGA DOUTRINA TRUMAN

Este é o modelo da política externa americana: do isolamento ao intervencionismo, da retirada à cruzada e, de novo, ao princípio.
Na sua condição de país política e moralmente auto-proclamado superior, os Estados Unidos só podiam se manter puros abstendo-se de envolvimento em um mundo corrompido ou – se o mundo não podia deixá-lo em paz  destruindo a fonte do mal. Em resumo, tanto os impulsos na direção do isolacionismo quanto na da cruzada surgiam do mesmo moralismo. Essas oscilações tendiam, além disso, a ser acompanhadas por mudanças radicais de humor: de um estado de otimismo, que surgia com a crença de que os Estados Unidos reformariam o mundo, a um de desilusão, na medida em que esses grandiosos objetivos (...) se revelavam além do seu alcance.
(John Spanier, La política exterior norteamericana a partir de la Segunda Guerra Mundial, Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 1991, p. 23).
Cada uma das nações deve saber que, para os Estados Unidos, a guerra ao terror não é apenas uma política  é um compromisso”. Nessa guerra, que pode durar anos ou décadas, “não há imunidade e não pode existir neutralidade”.
Com essas palavras, na solenidade de 11 de março, que assinalou os seis meses dos atentados ao World Trade Center e ao Pentágono, o presidente americano sintetizou aquilo que já se pode denominar Doutrina Bush. Qual é o conteúdo da nova Doutrina Bush? Como ela interpreta o mundo e orienta, estrategicamente, a hiper potência global?
A revisão da estratégia militar dos Estados Unidos, concluída há pouco, rompe um compromisso antigo das principais potências nucleares, de não usar essas armas contra inimigos não-nucleares. O Pentágono prepara-se para reduzir significativamente o arsenal nuclear intercontinental e, ao mesmo tempo, ampliar e diversificar as armas nucleares táticas. Essas armas táticas destinam-se a atingir alvos como bunkers subterrâneos e instalações de pesquisa ou produção de armas químicas, biológicas ou nucleares.
Desde 1945, os Estados Unidos jamais engajaram forças militares em tantos lugares do mundo. Nos últimos meses, bases avançadas americanas já foram implantadas em países da Ásia Central, junto às fronteiras da Rússia e China  o que seria inimaginável nos tempos da Guerra Fria.
Forças americanas atuam nas Filipinas, treinando tropas locais para o combate a um grupo fundamentalista islâmico, e agentes dos serviços secretos operam nos mais diversos países, desde o Oriente Médio até a Colômbia.
Os Estados Unidos, aparentemente, adotam uma atitude internacionalista, pois se engajam em inúmeros conflitos e áreas de tensão, no mundo todo. Entretanto, a atitude fundamental da hiper potência é isolacionista.
Os Estados europeus, desde a Idade Moderna, interpretam a política externa como um jogo de poder. Os Estados Unidos nasceram desprezando a “política de poder” – a Realpolitik – dos europeus. Quase instintivamente, a República americana adquiriu uma profunda orientação isolacionista, que se manifestou na Doutrina Monroe, de 1823, pela tentativa de separar o “Hemisfério Americano” da política européia.
O isolacionismo só foi abandonado quando os interesses vitais americanos sofreram ameaças. Na Primeira Guerra Mundial (1914-18), o engajamento tardio dos Estados Unidos decorreu da possibilidade de vitória alemã, que destruiria o equilíbrio de poder europeu e ameaçaria a hegemonia de Washington no “Hemisfério Americano”. Logo após a rendição alemã, os Estados Unidos reverteram ao isolacionismo, renunciando até a participar da Liga das Nações.
Na Segunda Guerra Mundial (1939-45), a história se repetiu, mas teve final diferente. Face à emergência do poder da União Soviética, que parecia capaz de dominar a Europa e ameaçar os interesses vitais americanos, os Estados Unidos não puderam retomar o isolacionismo. A resposta à nova situação mundial foi a Doutrina Truman, de 1947, que inaugurou a Guerra Fria.
O isolacionismo da Suíça não é uma fonte de tensões muito agudas. Mas, como ser isolacionista e, simultaneamente, ocupar a posição de maior potencia mundial?
A tensão dilacerante produzida pelo isolacionismo americano transborda sob a forma de um “espírito de cruzada”, que acompanha a política externa dos Estados Unidos desde, pelo menos, a Primeira Guerra Mundial. Se o “isolamento esplêndido” americano é perturbado por uma ameaça vital, essa ameaça deve ser exterminada de modo completo e definitivo.
Para os americanos, a sua política externa se traduz numa “cruzada do Bem contra o Mal”. A Doutrina Truman definiu o Mal como sendo a União Soviética e o comunismo.
A nova Doutrina Bush o define como sendo o terror.
O inimigo, difuso e ubíquo
Na Guerra Fria, o inimigo tinha um rosto  o Estado soviético e seu bloco de países-satélites. Também tinha um lugar o Leste, ou seja, o espaço geopolítico delimitado pela Cortina de Ferro. A Doutrina Truman sintetizava a estratégia da “contenção”, destinada a impedir a expansão da influência soviética para além da Cortina de Ferro. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e outras alianças político-militares secundárias erguidas na orla asiática funcionavam como pilares da “contenção”.
Na “guerra ao terror”, o inimigo não tem rosto, mas uma infinidade de máscaras, definidas periodicamente por Washington.
Ontem, Osama Bin Laden e a Al-Qaeda. Hoje, o “eixo do mal”: Iraque, Irã e Coréia do Norte. Amanhã, quem sabe... O “terror” não tem o mesmo significado para todos: o Hamas palestino e o Hezbollah libanês são “organizações terroristas” aos olhos de Israel e dos Estados Unidos, mas “combatentes da resistência” aos olhos de árabes e palestinos.
O inimigo difuso da “guerra ao terror” está em todos os lugares e em lugar nenhum. Abriga-se sob o manto protetor de “Estados renegados”, como o Afeganistão do Talebã, ou infiltra-se no território de “Estados amigos”, como as Filipinas. Os serviços de segurança e inteligência de Washington alertam para o perigo representado pelas “dezenas de células terroristas” que estariam “adormecidas” em território americano.
Então, “o inimigo está em nós”... Os Estados Unidos são a “nova Roma” contemporânea: a hiper potência global. No seu auge, o Império Romano dominou a maior parte do mundo antigo. A limes  linha de limites do Império  era guarnecida pelas legiões imperiais, de modo a conter as investidas periódicas dos “bárbaros”.
A visão de um mundo sombrio, hostil e ameaçador, é o alicerce da Doutrina Bush. A “nova Roma” acredita estar sitiada por hordas ferozes de “bárbaros”, dispostos a tudo para destruir os seus valores e modo de vida. Mas, ao contrário do Império Romano, não existe uma limes, pois os “bárbaros” estão em todos os lugares.
De acordo com a Doutrina Bush, o inimigo difuso e ubíquo não pode ser enfrentado de modo convencional. A nova ameaça exigiria o recurso a instrumentos extremos, que não estão disponíveis normalmente na democracia como tribunais militares de exceção e prisões preventivas sem acusação formal . Nem mesmo no auge da Guerra Fria aventaram-se iniciativas desse tipo.
Boletim Mundo Ano 10 n° 2

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