Newton Carlos
Quando naufraga mais um processo de paz, o governo colombiano rotula os guerrilheiros como “terroristas” para enquadrá-los na mira de Washington.
A república, proclamada na Colômbia em 1819, enfrentou quarenta revoluções antes de “estabilizar-se”. O século XX começou com a guerra dos mil dias entre conservadores e liberais, as duas vertentes políticas dominantes desde a independência, numa equação simples campo versus cidade. Ou seja: latifundiários e comerciantes urbanos, os dois bandos de criollos, herdeiros da Coroa espanhola, disputando a ferro e fogo o espólio.
O saldo foi de cem mil mortos e um legado de ódios.
Um padre, German Guzman, traçou no livro Violência na Colômbia o retrato de uma sociedade que se habituou a matanças intermináveis. A violência guerrilheira, intermitente desde os anos 60, se insere no painel mais amplo de uma tragédia nacional.
Entre massacres e arremedos de eleições os conservadores governaram absolutos até 1930. Naquele ano, ganharam os liberais, favorecidos pela crise mundial e crescimento, na Colômbia, da população urbana. O populismo inflamado de Jorge Gaitán levantou os pobres e favelados de Bogotá. O assassinato de Gaitán, em 1948, resultou no “bogotazo”, a revolta popular.
Então, instalou-se uma certa consciência política no eleitorado liberal, a primeira ruptura no jogo oligárquico limitado às “23 famílias” que usavam indistintamente os rótulos liberal e conservador.
Entre 1948 e 1957 houve uma guerra civil não declarada, com quase 135 mil mortos contabilizados.
Em nome da “pacificação”, os militares tomaram o poder em 1953. Mas as matanças continuaram, de modo brutal. À sombra da ditadura estavam as “23 famílias”.
Surgiram as guerrilhas liberais, às quais se juntaram grupos de esquerda e ultra-esquerda com a opção da luta armada na cabeça há algum tempo.
Mais ou menos dez siglas guerrilheiras, de início.
A guerra civil resultou na criação de núcleos camponeses sem relações com o poder central, para onde convergiram candidatos urbanos a revolucionários, sobretudo estudantes. Chamados de “repúblicas independentes”, esses núcleos se tornaram alvos militares e iniciaram movimentos de guerrilha, hoje condensados em duas siglas: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN). A primeira, e maior, de extração comunista. A segunda, de origem castrista. As duas, somadas, com cerca de 20 mil combatentes.
Então, operações encobertas do exército colombiano procuraram uma saída, treinando e equipando agrupamentos paramilitares, e estimulando matanças.
Hoje, os paramilitares são uma força com oito mil homens, comportamento de assassinos, fora do controle do exército. Sua atividade principal é aterrorizar gente do interior e evitar que ela dê apoio “logístico” à guerrilha.
São financiados sobretudo por latifundiários.
Os narcotraficantes, com movimento de caixa anual calculado em oito bilhões de dólares, se espalham em todas as direções. Pagam “impostos” de proteção às guerrilhas de esquerda, se infiltram num sistema político corrupto e dão algum aos paramilitares. A guerrilha também consegue recursos por meio de seqüestros de “símbolos da oligarquia”, como políticos e empresários.
Pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos oferecem à Colômbia grandes somas de ajuda militar sem vinculá-las diretamente à guerra às drogas. O Plano Colômbia, com verbas de mais de um bilhão de dólares, foi aprovado no governo Bill Clinton com um formato rígido, pelo menos no papel: distinção entre contra-narcóticos e contra-insurgência.
No projeto de orçamento de 2003, Bush acabou com essa distinção.
Assessores militares americanos, proibidos pelo Congresso de entrar em combate, se aproximam da linha de frente. Quando foi rompido o “processo de paz”, o presidente colombiano, Andrés Pastrana, pela primeira vez chamou os guerrilheiros de “terroristas”. Assim, procurou suprimir o estatuto de opositores políticos dos quais gozavam as Farc e o ELN, enquadrando-os como alvos da “guerra ao terror” de Bush. O início de uma nova era, ainda mais tormentosa?
Os PP, como são chamados os processos de paz, começaram na Colômbia em 1982, com a eleição de Belisário Betancur empunhando a bandeira da pacificação.
Hesitantes, as Farc assinaram um cessar-fogo, em 1984, e criaram a União Patriótica como seu braço legal.
A União Patriótica teve 350 mil votos nas eleições de 1986 e 350 militantes assassinados. A “abertura democrática” de Betancur naufragou e a violência retomou o seu curso. Só 12 anos depois, um outro presidente, Andrés Pastrana, voltou a encarar seriamente a questão de uma paz negociada.
Pastrana desmilitarizou uma área do tamanho da Suíça, transformando-a em território neutro, no qual as Farc e o governo pudessem negociar. Um cessar-fogo seria implantado em abril próximo, mas o seqüestro de influente senador precipitou o colapso, em fevereiro, de mais um PP. Contudo, o pano de fundo já era desfavorável ao cessar-fogo. Os militares colombianos consideram “humilhação” negociar com a guerrilha. O governo Bush também exigia mais dureza no trato com as guerrilhas.
Entre os colombianos comuns, a sede de paz converteu-se em sede de “lei e ordem”. Pela primeira na história colombiana, um candidato presidencial independente, Alvaro Uribe, ameaça o rodízio entre liberais e conservadores. Uribe é um conservador que promete mão de ferro contra as guerrilhas. Seria a escolha certa? Embora as forças armadas da Colômbia gastem, no momento, mais de três bilhões de dólares e tenham assegurada a ajuda bilionária americana, os mais otimistas calculam que ainda demoraria quatro a sete anos para estarem preparadas para enfrentar as Farc. O governo não tem controle efetivo sobre 40% do território nacional.
Quem são as Farc
Os primeiros grupos guerrilheiros colombianos surgiram em meados do século XX, com a radicalização de dissidentes do Partido Liberal, que reivindicavam a herança política de Jorge Gaitán. As Farc nasceram da influência comunista sobre esses grupos.
Nos anos 60, a insistência na luta armada abalou as relações entre as Farc e a direção do Partido Comunista colombiano. Em 1984, a pacificação do governo Betancur e a criação da União Patriótica, o braço legal das Farc, geraram acesos debates no interior da guerrilha. Mas a opção pela luta armada prevaleceu.
As Farc organizam-se quase como um exército regular. Seu chefe histórico, Manuel Marulanda, o “Tiro Fijo”, o mais velho guerrilheiro do mundo, mostrou no livro Cuadernos de campaña que, hoje, as Farc mesclam a nostalgia de velhas lutas políticas com uma mentalidade militar. As relações da guerrilha com o narcotráfico e o uso de seqüestros como forma de financiamento obscurecem as pretensões reformistas de esquerda.
Boletim Mundo Ano 10 n° 2
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