Regina Araújo
Um calor insuportável e uma quantidade inusitada de bandeiras dos Estados Unidos recebia os peregrinos em Nova York, no início do mês de agosto. E eles eram numerosos, vindos de todos os cantos do país.
Para muitos americanos, visitar a “cratera” que restou no lugar das imponentes torres gêmeas do World Trade Center é um dever cívico de primeira grandeza.
Os mais provincianos não escondiam suas dificuldades em lidar com o cotidiano da metrópole: na entrada do ônibus que nos levaria ao Battery Park, duas senhoras, saídas de algum subúrbio nos confins de Ohio, causaram um grande confusão diante da máquina cobradora, que teimava em recusar seus bilhetes, insistindo que tinham que ver o local da tragédia e prestar alguma forma de homenagem às vítimas. Assim como elas, milhares de pessoas se amontoam todos os dias para assistir ao estranho espetáculo: um imenso buraco, com restos de construções em suas margens e uma enorme bandeira americana no centro. Depois, deixam suas mensagens nos inúmeros memoriais da tragédia espalhados pela cidade, a maior parte deles ilustrados com fotos dos mortos e depoimentos de seus parentes.
O roteiro da peregrinação passa também pela exposição temporária que pretende oferecer um lugar de reflexão sobre os eventos de 11 de setembro, montada no histórico e imponente saguão da Grand Central Station, a belíssima estação de trem situada no coração da ilha de Manhattan. Imensos painéis assinados pelo artista plástico Daniel Kohn interpretam duas perspectivas com vistas sobre a paisagem da metrópole, que deixaram de existir junto com as torres. Embalados por um trilha sonora composta especialmente para o evento, os visitantes são convidados a se imaginar no alto das torres, olhando para o leste (em direção ao bairro do Brooklyn) e para o oeste (em direção à cidade de Nova Jersey), e a mergulhar na placidez que a visão de cima emprestava aos caóticos ritmos da cidade, reforçada pelos tons pastéis da pintura.
Os lemas da peregrinação estão estampados em todos os cantos: “God bless America” e “United we stand”, além de cartazes e pinturas da imagem já tornada célebre dos bombeiros erguendo a bandeira em meio aos escombros. Não há nenhuma referência à catástrofe do Afeganistão ou à iminente guerra contra o Iraque, pelo menos não nas ruas. O mundo exterior não existe. O contra-ataque do Império pode aumentar a popularidade do presidente e repercutir nas urnas, mas não gera ícones na paisagem urbana.
Peregrinações a lugares simbólicos das vitórias e tragédias nacionais são ingredientes básicos dos nacionalismos.
O novo nacionalismo americano, que se alimenta do forte sentimento de comoção gerado pela tragédia, freqüenta todas as esferas da vida pública em Nova York. Por ocasião da “noite contra o crime” (6 de agosto), o prefeito da cidade discursou em uma pequena praça nos arredores da sede da ONU, assistido por uma reduzida platéia composta de moradores das redondezas e algumas dezenas de policiais. A idéia era comemorar a redução dos índices de criminalidade e homenagear a eficácia do trabalho da polícia que, de acordo com o prefeito, está garantindo a segurança nas ruas da cidade. Antes do breve discurso, observou-se o já tradicional minuto de silêncio em homenagem às vitimas dos atentados. Depois, a reação dos americanos à tragédia de 11 de setembro seria citada diversas vezes como prova de solidariedade e capacidade de união popular em momentos de dificuldade.
Aliás, só mesmo imbuído de muito sentimento cívico para enfrentar com bom humor alguns dos resultados práticos da tragédia. Imensas filas para o embarque em vôos domésticos serpenteiam nos saguões do Aeroporto Internacional John Fitzgerald Kennedy, depois que entraram em vigor as novas medidas de segurança aérea. A situação é tão tediosa que a equipe de segurança conta com a ajuda de um sujeito pago para fazer piadas (invariavelmente sem graça, como era de se esperar) e animar a longa espera dos viajantes. Todas as bagagens de mão passam por minuciosa checagem, tanto pelos aparelhos como pelos funcionários. As pessoas só são admitidas na sala de embarque depois de se livrarem de todos os metais, inclusive relógios e moedas.
No portão que dá acesso à aeronave, nova rodada de revistas, desta vez em passageiros selecionados. Entrar no avião me custou cerca de hora e meia entre filas e revistas, na última das quais fui obrigada a tirar o sapato e levantar a barra da calça.
Os responsáveis pelos atentados de 11 de setembro calcularam com precisão a rota e os resultados do impacto dos aviões. Talvez até tenham previsto a atual histeria nos aeroportos americanos. Mas certamente não imaginaram a dimensão da ajuda que prestariam às forças que dizem combater: poucas vezes na história os ícones nacionais conquistaram uma adesão tão espetacular, e em tão pouco tempo. Pelo menos no plano simbólico, a idéia de América e o sentimento do poderio americano estão mais fortes do que nunca.
Boletim Mundo Ano 10 n° 5
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