quarta-feira, 30 de março de 2011

CENÁRIO DEVASTADO

Newton Carlos
A Argentina parece ter atravessado uma guerra. Não há prédios destruídos, mas uma paisagem de ruína social e econômica que lembra o pós-guerra europeu.
Um grupo de dez psicólogos e psiquiatras argentinos criou o “Psicólogos  em Rede”, para atendimento ao número crescente de agrupamentos carentes.
Preços simbólicos, entre sete e nove pesos por consulta, por volta dos dois dólares e meio. A idéia de cobrar alguma coisa, e não fazer um trabalho totalmente gratuito, mais condizente com a disposição de ajudar, partiu da constatação de que a própria idéia de mendicância é um trauma.
Há razões para isso. No epicentro da profunda crise argentina, que  produz uma carga pesada de depressão e estresse, não estão pobres, mas “novos pobres”, gente não habituada a viver da caridade alheia.
Sua incorporação à paisagem nacional é fato recente, em escala histórica. O que se passa na Argentina é um trágico e acelerado processo de empobrecimento, com condimentos que nada têm a ver com as misérias crônicas do Terceiro Mundo. Atingiu  em cheio uma classe média que esteve entre as mais pujantes do mundo A imagem de uma criança argentina esquálida, comida pela fome, tem um significado diferente da imagem similar de uma criança africana. Pesquisas do Grupo Sophia conduzem a essa conclusão. A criança argentina, em tempos passados, alimentou-se adequadamente; a africana, não. Hoje, 53% dos 36 milhões de argentinos vivem em condições consideradas de pobreza.
Os “novos pobres”, egressos dessa classe média, que se orgulhava de gastar em roupas a metade do salário, constituem 80% dos bolsões já existentes de miséria.
O governo de Buenos Aires é surpreendido a todo momento com “novos tipos de crimes”. Por exemplo, o aumento dos roubos de placas em logradouros públicos.
No mercado formal o quilo de bronze pode ser vendido a US$ 1,10. O medo da polícia pode desviar o material para o ferro velho, onde o preço baixa para US$ 0,28.
Mas é sempre um dinheirinho, quando o nada é a dimensão diária. São placas que pesam entre três e dez quilos. Uma, de bronze, foi arrancada do Obelisco, um dos ícones da zona central de Buenos Aires.
A Telecom informa que, em 2002, cresceram em 500% os roubos de cabos. O preço do quilo de cobre subiu de US$ 6 para US$ 8. Há quem faça comparação com o filme italiano “Ladrões de Bicicletas”: a opressão de guerras mudando o perfil de sociedades e tornando a delinqüência uma banalidade. No caso da Argentina uma guerra diferente, delineada a partir da sensação de boa parte da população de que sofreu e continua sofrendo bombardeios cerrados, dos políticos corruptos, do FMI, de uma elite insensível, do governo americano.
O jornal Página 12 publicou que em villas miséria (favelas), no cinturão periférico de Buenos Aires, pessoas estavam se alimentando de ratos. Foi um choque acompanhado de incredulidade, apesar da inexistência de desmentidos. A Argentina tem terras férteis e excelente gado. Como imaginar consumo de ratos? Alguém lembrou o filme polonês “Canal”. Sempre associação, portanto, com guerra.
Roubo de placas, em vez de bicicletas, num neo-realismo argentino produzido por uma guerra diferente, de tipo financeiro.
Os “novos pobres” têm se multiplicado com acréscimos de parcelas de quase um milhão em seis meses. No primeiro trimestre, as vendas em supermercados caíram em 27,7% e a atividade na construção despencou 37,2%. Nos anos 90, o salário médio dos argentinos caiu de 451 para 253 pesos, enquanto numa classe alta cada dia mais encolhida aumentou de 2.053 para 2.881. Classe média empobrecida e um país cada vez mais dual. Capital e trabalho se igualaram na Argentina: já dividiram meio a meio a renda nacional.
Hoje, o desemprego atinge recordes históricos.
São 3 milhões, ou 22% da população ativa. Mas, nessa amplificada faixa de vítimas da “guerra argentina”, é preciso também incluir os cuentapropistas, os biscateiros, mais 19% da população ativa. O governo de Buenos Aires anuncia outra novidade: contabilizou 140 mil vim vendo do que cata em lixo. Até há pouco não se sabia da existência de catadores na Argentina.
Mas essa camada de cuentapropistas vinha se formando na surdina e já compõe contingente com direito a entrar nas estatísticas oficiais. Nem sempre o recurso recai em atividades humilhantes mas lícitas, como catar lixo ou vender lugares em filas de bancos. Houve 34 mil assaltos na província de Buenos Aires no primeiro semestre. O Grupo Sophia levantou a existência de 300 mil pessoas com armas em casa na mesma Buenos Aires. São 550 crimes por dia: 40% dos moradores já foram assaltados.
O dinheiro retido em bancos quebrou a confiança no sistema financeiro. Calcula-se que os argentinos guardem em algum lugar extra-banco, inclusive debaixo do colchão, US$ 28 bilhões. Isto excita seqüestradores e os seqüestros-relâmpagos viraram praga. Os pedidos de resgate variam entre US$ 500 e US$ 2 mil.
Instalou-se o medo, sobretudo numa Buenos Aires onde até há pouco tempo o exercício do ir e vir era uma liberdade quase intocada.
Criou-se uma Rede Solidária e outras entidades do gênero, que se juntaram numa Jornada Nacional de Paz. Durante três minutos, ao mesmo tempo, foram exigidas medidas de combate à criminalidade em escolas, órgãos públicos, casas e ruas de todo o país. Marcas pré-guerra, no entanto, continuam de pé. A Argentina tem notável reserva cultural. O teatro Colón, por exemplo, permanece sendo uma referência mundial das belas artes. Artistas europeus, em turnê por estas bandas, em geral fazem questão de que o Colón seja incluído. Enriquece currículos.
Boletim Mundo Ano 10 n° 6

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