José Arbex Jr.
Cheguei a Jerusalém no dia 10 de abril, integrando uma delegação internacional do Fórum Social Mundial (FSM). Outros dois brasileiros integraram a delegação: o padre Paulo Suess, representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Cáritas Brasileira, e o deputado estadual Ronaldo Zulke, representando a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Tínhamos três objetivos precisos:
1) levar nossa solidariedade ao Mário Lill e Paul Nicholson, membros da Via Campesina, cercados por tropas israelenses no QG de Yasser Arafat, em Ramallah;
2) visitar o israelense Sergio Yahni, preso por recusar-se a servir no Exército de Israel;
3) estabelecer contato com os religiosos brasileiros que servem na Igreja da Natividade, em Belém, cercada por tropas israelenses. Segue um breve diário de nossas atividades.
Pela manhã, saímos de Jerusalém rumo a Ramallah. Pouco antes da fronteira, pegamos uma estrada secundária para contornar o posto de controle: não teríamos permissão para passar. A idéia era atravessar a pé a estrada, em um ponto mais adiante, e pegar um carro, já previamente acertado, do outro lado. A travessia foi perigosa: a qualquer momento poderíamos ser atingidos por soldados.
Em Ramallah, fomos de carro até um ponto em que se tornava perigoso continuar, pois a cidade estava sob toque de recolher. Fomos auxiliados por um “esquema” clandestino, bastante precário, para chegar ao pronto socorro local, a única instalação médico-hospitalar não destruída pelos israelenses. Ramallah é uma cidade em escombros; há lixo por todos os cantos, carros destroçados, postes de luz derrubados.
Já no PS, o doutor Jihad Mash’al, diretor geral da União dos Comitês de Socorro Médico da Palestina, diz que já somavam pelo menos 75 mortos em Nablus, bem mais de 300 em Jenin, 26 em Ramallah, além de centenas de feridos irrecuperáveis.
Enquanto ainda conversávamos com o médico, o Exército suspendeu por três horas o toque de recolher, com o objetivo de permitir que, ao menos, os palestinos comprassem comida. Foi a terceira suspensão, em 13 dias de ocupação. Fomos ao centro, na praça Al-Manara (o farol), onde algumas mulheres decidiram convocar a primeira manifestação na Ramallah ocupada.
O ato começou com umas 20 mulheres, bem diante dos tanques de Israel. A idéia era sair em passeata até o QG de Iasser Arafat, a cerca de 500 metros.
Bastaram dez minutos para que os soldados disparassem bombas de gás, de um tipo muito forte. Uma delas estourou bem perto dos meus pés. Uma sala de café, situada no terceiro andar de um prédio, começou a pegar fogo, o que mostra que eles não dispararam “apenas” bombas de gás. Depois da manifestação, voltamos a Jerusalém, antes que o toque de recolher entrasse novamente em vigor.
Ontem à noite fizemos reunião com Dan Bitan, do movimento israelense Paz Agora, e Celso Garbarz, do grupo israelense B’tselem de defesa dos direitos humanos. Celso Garbarz denunciou a prática de tortura de presos palestinos por parte do Exército israelense. Citou testemunhos de soldados que condenam a tortura.
Existem cerca de 400 soldados que se recusam a servir no Exército israelense nos territórios ocupados; seis estão presos. É o caso de Sérgio Yahni, membro do Comitê Internacional do FSM. Yahni alega que o Exército israelense continua sendo de ocupação, o que é, para ele, inaceitável. Yahni deverá ser solto nas próximas horas, após ter permanecido 29 dias preso.
Dan Bitan, do Paz Agora, acredita que os três pontos defendidos por sua organização podem ser a base para negociação de um acordo amplo e duradouro de paz, ainda que difícil: respeito às fronteiras estabelecidas em 1967, status de capital binacional para Jerusalém e direito ao retorno dos refugiados palestinos. Ele acredita não haver outra saída.
Jeff Halper, coordenador do Comitê Israelense Contra a Demolição de Casas, informa que desde 1967, Israel demoliu cerca de 8 mil casas de palestinos; só nas últimas três semanas, foram outras “várias centenas, provavelmente mais de mil”. Ainda segundo Halper, os militares vêm adotando o seguinte procedimento: se eles acreditam que em determinada área vive algum “terrorista”, primeiro enviam helicópteros Apache; depois tanques e buldôzeres; destroem completamente os prédios, ainda que ali vivam dezenas de famílias. Os tanques passam pelas ruas derrubando e triturando tudo pela frente: postes de luz, automóveis, muros etc.
Cerca de seis mil palestinos, israelenses e estrangeiros fizeram hoje uma demonstração contra Sharon, em Jenin, na Cisjordânia ocupada, ao norte de Israel. Os manifestantes levaram 40 caminhões repletos de alimentos, roupas e remédios aos palestinos do campo de Jenin (uma favela de 18 mil habitantes), onde as tropas de Sharon praticaram um massacre, no dia 2 de abril.
Nossa delegação deixou Jerusalém por volta das 9 horas, rumo a Jenin. Estavam conosco o deputado federal Milton Temer, o ex-embaixador da Palestina no Brasil, Farid Sawan, os ativistas israelenses brasileiros Michel Haradon (do grupo Shalom, Salam, Paz) e Gershon Knispel (grupo Taba), o israelense Michel Warshawski e outras delegações estrangeiras.
Chegamos a um ponto a 18 quilômetros de Jenin, onde nos encontramos com outros manifestantes.
A partir dali iniciamos a passeata, por cerca de 5 quilômetros, sempre seguidos de perto por jipes e carros blindados do Exército de Israel.
Na fronteira com Jenin, onde existe um posto de controle do Exército, fomos barrados. Só passou o comboio de caminhões. Não há qualquer garantia de que os alimentos, as roupas e os remédios vão ser de fato distribuídos aos palestinos. Há um péssimo precedente: Sharon proibiu que até mesmo um representante do ministro da Saúde da Bélgica entrasse em Ramallah, ontem, para distribuir remédios para a população.
Após o final da passeata, nossa delegação tentou entrar em Jenin por caminhos secundários. A idéia era ouvir depoimentos dos sobreviventes do massacre de 2 de abril. Conseguimos conversar com vários sobreviventes, na pequena cidade de Taibe, a 15 quilômetros de Jenin.
O primeiro encontro aconteceu em uma escola, transformada em ambulatório. Ali se acham duzentos sobreviventes, todos homens. A maioria não sabe onde estão as suas mulheres, filhos, irmãos, amigos e parentes. Ahmad e Amin, “porta-vozes” do grupo, descreveram a operação de terror, a chegada dos Apaches, dos tanques, dos buldôzeres e dos soldados. Moradores, em pânico, se entregaram com os braços erguidos; outros se esconderam em cavernas.
Alguns homens, principalmente os jovens, foram baleados quando ainda estavam com os braços erguidos.
Outros foram presos, desnudados e transformados em “escudos humanos”: sob a mira de metralhadoras, eram obrigados a seguir na linha de frente dos batalhões que vasculhavam as ruas estreitas. Amin serviu de “escudo humano” durante quatro dias. Não se sabe ao certo quantos morreram. As cifras mais conservadoras indicam 300 mortos, outras chegam aos 500.
Entrevistamos, depois, duas famílias que viviam em Jenin. Os relatos pareciam extraídos de algum livro demoníaco. Mohamed, 35 anos, sua mulher Sirin, 24, e os filhos Mai, 1, Rim, 4, e Daria, 7, foram obrigados a viver quatro dias em uma caverna, junto com outras 50 famílias, sem comida nemÊ roupa, e com pouquíssima água. Só deixaram a caverna quando já era impossível permanecer no local. Mohamed conta que eles poderiam ter sido executados.
Uma delegação de 26 estrangeiros (a nossa, ampliada com franceses, islandeses, australianos, espanhóis e outros) dirigiu-se de novo ao centro de Ramallah, para fazer manifestação diante do QG de Arafat, aproveitando a visita de Colin Powell.
Ramallah estava sob toque de recolher e não havia ninguém nas ruas. Caminhamos lentamente, com os passaportes bem erguidos e visíveis para os atiradores postados no alto dos edifícios.
Quando já estávamos perto do QG de Arafat, fomos abordados por um tanque; houve uma primeira negociação. A cem metros dali, uma nova barreira. Soldados apontaram os fuzis e exigiram que nos retirássemos.
Fomos até o hospital de Ramallah. Ali, fomos cercados por três tanques, por cerca de 90 minutos.
Quando, finalmente, pudemos voltar a Jerusalém, uma nova cena de humilhação nos aguardava. Os guardas impediram a passagem de uma velha senhora, que ficou várias horas na fila, sob um sol insuportável, aparentemente porque seus papéis não estavam em ordem.
Outra mulher pôde passar com seus filhos, mas não o marido. Detalhe: quando a mulher e os filhos passaram, notamos que um blindado israelense deslocou- se até o alto de uma pequena colina nas proximidades.
Eles estavam preparando uma divertida sessão de tiro ao alvo, para o caso de o marido tentar seguir sua esposa.
Boletim Mundo Ano 10 n° 3
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