Este livro fala da minha angustiada paisagem interna, tanto quanto da torturada paisagem de meu país. “A paisagem é uma construção da mente”, escreve Simon Schama. “Seu cenário é construído por camadas de memória e de pedra”.
Tanto quanto possa me lembrar, eu sempre me movimentei entre dois registros de consciência, percorrendo uma paisagem que, ao invés de três, oferecia seis dimensões espaciais: um espaço tridimensional judeu que tinha como pano de fundo um espaço árabe igualmente tridimensional. Meu falecido pai, geógrafo e cartógrafo, foi, sem querer, o responsável por essa visão dual e por essa consciência dividida.
Desde muito cedo, ele me levava em suas visitas aos amigos árabes. Assim, a paisagem árabe nunca me foi estranha ou ameaçadora; ao contrário, ela deu vida a imagens, cheiros e um sentido de calor humano tão poderoso que sua marca nunca foi apagada, meio século depois.
(...) Basta justapor uma fotografia de um povoado árabe tirada nos anos 30 a uma outra, tirada nos anos 90, de um adorável subúrbio (israelense) construído no mesmo local, ou uma foto aérea, mostrando os campos poeirentos e vazios daquela época, a outra, exibindo os vastos campos de grãos dourados ou hortas verdes que agora ali florescem, para que todo mundo se convença do “progresso” conquistado. Mas, como diz S. Yizhar, “a terra, na sua profundidade, não esquece” que não se trata de um progresso linear e suave, “mesmo após as semeaduras e novas colheitas”. Este progresso não é uma continuação do passado, mas sim construído sobre as ruínas de uma outra civilização, violentamente destruída. Quem tem o direito de julgar o seu “atraso”?
É um truque elementar congelar o passado dos outros e reivindicar o progresso para si. A paisagem palestina, ainda que “não moderna”, era um mundo integral para aqueles que o habitavam confortavelmente – às vezes, mais confortavelmente do que aqueles que vivem no mundo moderno que o substituiu.
Trechos do livro Sacred Landscape – the buried history of the holy land since 1948, de Meron Benvenisti, University of California Press, 2000).
Meron Benvenisti foi vice-prefeito de Jerusalém, entre 1971 e 1978, e é colunista do Haaretz, um dos mais importantes jornais de Israel. Seu livro causou grande impacto, dentro e fora de Israel. Ele trouxe à tona uma constatação tão cruel quanto esclarecedora: em algumas décadas, uma bem-sucedida política de destruição da memória histórica, praticada pelo Estado israelense, conseguiu eliminar os vestígios da milenar cultura árabe que habitava aquela região.
Com amargura, Benvenisti nota que cinco séculos depois que os mouros deixaram a Espanha, ainda são visíveis os marcos históricos que permitem delimitar os contornos de sua presença naquele país; mas um palestino que hoje visite Israel, apenas cinco décadas após a criação do Estado judeu, terá dificuldades de encontrar o local onde se erguia seu antigo lar.
Ao comentar, em outro contexto e por outras razões, o êxito dessa política de supressão da memória, o general Moshe Dayan afirmou: “Nós viemos para este país que já era habitado pelos árabes, e aqui estamos estabelecendo um Estado hebreu, isto é judaico. Em áreas consideráveis do país, compramos as terras dos árabes. Cidades judaicas foram construídas no lugar das cidades árabes. Vocês nem sabem o nome das cidades árabes, e eu não os culpo por isso, porque nem existem mais os antigos livros de geografia; mas não apenas os livros não mais existem, como as cidades árabes também desapareceram.” (Haaretz, 4 de abril de 1969).
Benvenisti não questiona a legitimidade de Israel, nem a sua identidade judaica.
Mas questiona esse processo de destruição da memória histórica e de negação dos direitos dos árabes (por ele qualificados como irmãos-inimigos), que também implica, no fim das contas, a destruição de parte da história da diáspora e da memória hebraica. O seu livro conta como foi produzido esse processo.
Cartografia do esquecimento
Em 18 de julho de 1949, um grupo de nove conhecidos cartógrafos, arqueólogos, geógrafos e historiadores reuniu-se no gabinete do primeiro-ministro do recém-criado Estado de Israel. Eles receberam de David Ben-Gurion a missão de dar nomes hebreus às montanhas, aos vales, riachos, estradas e localidades situados nas regiões do Negev e Arav. Essas regiões tinham sido militarmente ocupadas pelos israelenses quatro meses antes, na guerra que originou o Estado judeu.
O grupo entendeu a importância de sua missão: não se tratava de um trabalho “técnico”, mas de criar legitimidade histórica e cultural para o ato de anexação de um território ainda habitado por outro povo. Tarefa nada fácil: entre 1872 e 1878, uma pesquisa feita pelo Fundo de Exploração da Palestina, sob controle do império britânico, indicou que de 9 mil nomes de localidades coletados na região, só 10% eram judeus. Não havia como sustentar o mito sionista de que a Palestina era uma “terra sem povo” destinada a um “povo sem terra”. Um “novo mundo” deveria ser criado, à imagem e semelhança do mito.
Assim foi construída uma geografia israelense da Palestina. O mapa, no caso, precedeu a paisagem e deu legitimidade ao processo de destruição sistemática dos registros históricos, culturais e sociais de toda uma civilização que deveria ser erradicada. Como que por “encanto”, desapareceram os nomes árabes e brotaram, no seu lugar, os hebreus, abrindo caminho para a destruição física dos vilarejos, das casas, das plantações, da cultura árabe palestina. Poucas vezes na história da humanidade, a cartografia terá revelado tão plenamente a sua natureza bélica.
Os novos habitantes da terra adotaram um “padrão ocidental”: construíram-se avenidas e ruas asfaltadas, prédios modernos foram erguidos sobre os escombros das antigas casas árabes. Algumas poucas foram preservadas, para se tornarem locais “exóticos”, como “colônias de artistas”; mesquitas em ruínas foram transformadas em bares e restaurantes. Construções que, extraídas de seus contextos originais, funcionam como exemplares de um museu de antiguidades, sem qualquer eficácia cultural.
Benvenisti nota, com tristeza, a destruição das antigas formas de agricultura, em especial dos olivais – plantas que representam o coração da cultura árabe e que dão flores e frutos ao longo de centenas de anos; sua mera existência, por isso mesmo, atesta a antiguidade das famílias que habitavam a região quando os israelenses ali chegaram.
Assim, a destruição dos olivais em torno de Belém, pelo exército israelense, sob o pretexto de que serviam de abrigo para guerrilheiros árabes, correspondia, na verdade, à urgência de apagar o traço da existência árabe na região. Irônico em relação à proverbial capacidade dos agricultores israelenses de “fazer o deserto florescer”, Benvenisti nota que, na realidade, os novos ocupantes apenas substituíram culturas.
O livro deixa a sensação de que, na Palestina histórica, está sendo cometido um crime contra toda a humanidade. Não se trata, apenas, de agressões contra o povo árabe palestino, mas contra o acervo dessa enciclopédia universal que se chama história. Uma parte da cultura humana está sendo suprimida. Todos pagamos o preço.
Boletim Mundo Ano 10 n° 2
Nenhum comentário:
Postar um comentário