terça-feira, 29 de março de 2011

EL CONDOR VUELVE

Jayme Brener
Encarapitado nos Andes, entre a Amazônia e o Pacífico (ao qual não tem acesso), está um dos mais importantes laboratórios de transformações sociais da América Latina: a Bolívia. Lá aconteceu quase de tudo, desde a independência da Espanha, em 1825.
Guerra com o Chile por uma saída para o Pacífico (1879-83), o Acre perdido para o Brasil (1903), guerra com o Paraguai que levou à amputação do território do Chaco Boreal (1932-35); um presidente pró-nazista, Gualberto Villarroel, deposto e morto por uma multidão enfurecida em 1946, com o corpo pendurado em um poste...
Teve também uma revolução popular que destruiu as Forças Armadas (1952) e deu início a um dos mais completos processos de reforma agrária do continente, um movimento sindical que figurou entre os mais fortes do mundo e um presidente – Jaime Paz Zamora – que, ao assumir, em 1989, lançou a “diplomacia da coca”.
Folhinha da planta na lapela, Paz Zamora percorria o mundo tentando convencer os países desenvolvidos de que a erradicação dos cultivos – tradicionais para os indígenas – seria um desrespeito à população majoritária no país.
A onda neoliberal jogou Paz Zamora para o escanteio. Mas agora é o deputado indígena Evo Morales que chegou ao segundo turno das eleições presidenciais com um programa que parece meio fora de época: reduzir a influência americana e garantir os cultivos tradicionais de coca.
São muitas as originalidades do país. Veja-se a capital, La Paz, aninhada sobre um enorme vale. Os mais ricos moram no fundo, onde também estão as universidades e igrejas barrocas. Conforme a grana vai escasseando, o cidadão vai se arrumando em casinhas mais acima, até chegar ao topo. Apenas uma ponte – das Américas – une os dois lados do vale.
O país é pobre, o subemprego grita na forma de milhares de vendedoras de rua, as famosas cholas indígenas, com seus chapéus-coco e saiotes superpostos. Mas, trata-se de uma pobreza pré-industrial, menos “miserável”, digamos assim, do que a que se encontra no Brasil. A reforma de 1952 garantiu, por exemplo, que grande parte da população tivesse a sua terrinha, sua casa humilíssima, mas que não se compara às favelas de nossas maiores cidades.
Cochabamba, nos Andes é uma cidade colonial hispânica mais típica, a plaza mayor quadrada, com edifícios do século XVIII, uma população gentil – que fala um espanhol claríssimo, estendendo os esssssesss, e um animado Carnaval, recheado de máscaras coloridas.
O lago Titicaca (gato grande, para os indígenas), que os bolivianos dividem com o Peru, traz várias ilhas feitas de totora, uma espécie de junco, que, trançado, permite ao homem usá-lo como tapete flutuante. Lá sobrevivem antigas colônias de artesãos indígenas.
Nessas ilhas, quando o tempo ruim não deixa chegar barcos trazendo suprimentos como papel higiênico, o remédio é usar tufos de pêlo de lhama e alpaca. Material caríssimo no mundo inteiro, mas que abunda – sem trocadilho – nas ilhas do lago Titicaca.
Para os remanescentes da geração hippie, resta a lembrança do velho “trem da morte”, que ligava Corumbá à boliviana Santa Cruz de la Sierra, e que tomou o nome das condições de viagem. Os passageiros, muitos deles estudantes com suas mochilas e sandálias, espremiam-se com indígenas carregados de galinhas e porcos. Com direito à música típica dos charangos y bombos; afinal, o clássico El condor pasa ganhou o mundo, nas vozes de Paul Simon e Art Garfunkel, nos anos 60 e 70.
O sumiço do “trem da morte” não é a única novidade no cenário de Santa Cruz de la Sierra. A cidade, moderna, é a mais rica da Bolívia. Há o cultivo da soja, que, em grande parte, está nas mãos de fazendeiros vindos do Brasil. Mas a riqueza da cidade vem, principalmente, da cocaína. E aí vale uma distinção entre a folha de coca e a cocaína. A folhinha é usada há séculos pelos indígenas, que a mascam para amenizar os rigores da fome e da altitude – em La Paz, a capital mais alta do mundo, a 3,3 mil metros, o turista desavisado acorda à noite, com o coração parecendo que vai saltar do peito, devido à baixa pressão atmosférica. Desde o fim do século XIX, espertalhões perceberam que a folha, macerada e mesclada a produtos químicos, transforma-se na cocaína, um poderoso estimulante.
Em nome da “guerra ao tráfico”, os Estados Unidos impuseram sua presença militar no país. E também um plano de erradicação de cultivos. Os cocaleros passaram a receber 2,5 mil dólares por hectare de coca destruído e 933 dólares ao ano para cada cultivo “alternativo” (como tomates). Seriam tolerados apenas 12 mil hectares para a produção tradicional da folha de coca. Duplo resultado negativo para Tio Sam: depois de receber a grana, os cocaleros perceberam que estavam perdendo dinheiro, já que seus tomates eram vendidos a preço muito mais baixo do que a folha de coca. Daí o nascimento de um movimento de resistência, em especial na região de Chapare, que tem à frente um líder indígena de formação socialista: Evo Morales.
O fracasso da política “antidroga” ficou evidente na eleição presidencial de julho, quando Morales chegou ao segundo turno. Detalhe: pouco antes, declarações de políticos e financistas americanos, sobre o “perigo representado por Lula”, fizeram tremer as bolsas de valores e disparar o dólar, no Brasil. Lá na Bolívia, o êxito de Evo Morales – que elegeu uma bancada repleta de cholas – foi garantido por uma declaração do embaixador dos Estados Unidos. Dizendo que seu país se opunha ao líder cocalero, ele atirou os votos de milhares de bolivianos irritados no colo de Morales.
Na Bolívia, el condor vuelve...
Boletim Mundo Ano 10 n° 4

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