Mamede Mustafa Jarouche
No século XIII, mais precisamente em 1258 d.C., os mongóis invadiram Bagdá, então uma das cidades mais civilizadas do planeta. A devastação que eles levaram a cabo quase não teve paralelo na história da humanidade: foram oito dias de pilhagem e massacres tão violentos que, com os crânios das vítimas, os mongóis montaram 120 pirâmides. Finalmente, o chefe dos invasores, Hulago, determinou a morte do último califa da dinastia abássida, e deixou que seus soldados lançassem os manuscritos das bibliotecas no rio Tigre. Conta-se que as águas do rio ficaram negras, e que se podia atravessá-lo de uma margem a outra a pé. E por que Hulago fez o que fez? Resposta: porque dispunha de um exército suficientemente poderoso.
Bagdá era rica, prestigiosa, situada em ponto estratégico. Por que não? Como ninguém conseguia detê-lo, ele foi em frente.
Em certo sentido, esse acontecimento marcou o fim de uma era. Embora já tivesse vivido dias mais gloriosos entre o século VIII e o X, Bagdá continuava então com o prestígio quase intacto: sede do califado muçulmano e de imensas riquezas, ponto para o qual afluíam poetas, escritores, filósofos, cientistas, teólogos e todo aquele que estivesse atrás de melhores oportunidades na vida.
A cidade foi construída em 762 pelo califa abássida al-Mansur, que a denominara igualmente de Madínat Assalám (“cidade da paz”), para marcar devidamente a mudança de poder que se operara no mundo árabe-muçulmano em 750, quando a dinastia omíada, que reinava em Damasco, fora desalojada do poder por uma revolução liderada pelos abássidas.
A localização da nova capital não foi escolhida por acaso: de um lado, afastava o poder central da Síria, que fora base da dinastia anterior, e, de outro, aproximava-a da Pérsia, cuja população aderira em peso à revolução. E, assim, Bagdá também ficaria próxima do lugar onde haviam se desenvolvido, havia milênios, os impérios mesopotâmicos: Suméria, Babilônia e Assíria, autêntica aurora da civilização humana.
Fundada por Maomé (ou, mais corretamente, Muhammad) no século VII, na desértica Península Arábica, a religião muçulmana logo conheceu uma rápida expansão: em menos de um século, atingira, no Ocidente, a Península Ibérica, e, no Oriente, chegara ao arquipélago malaio. Esse enorme império era governado a partir de um poder central, primeiramente situado na cidade de Medina, onde o profeta falecera, mas que logo se transferiu para Damasco, atual capital da Síria. O sistema de “califado”, criado após a morte do profeta para designar quem o sucederia na liderança política e religiosa dos muçulmanos, não era, no início, hereditário: os quatro primeiros califas foram escolhidos mediante consenso dos líderes da comunidade.
Foi somente sob o governo da dinastia abássida que o mundo muçulmano atingiu seu máximo esplendor cultural. A poesia, contínuo objeto de cultivo pelos árabes, conhece expansão e renovação, fruto das novas formas de ver e sentir. A prosa atinge seu apogeu, com a elaboração de crônicas e fabulários que circularão por todo o mundo civilizado. Todo império precisa de uma historiografia para legitimar-se: de pronto surgem dezenas de historiadores, que produzem relatos minuciosos, utilizando, para os eventos contemporâneos, a técnica de divulgar todas as versões correntes.
Os conhecimentos geográficos, dada a vastidão do mundo muçulmano, se ampliam, com a redação de inúmeros tratados, que obedeciam quer a imperativos de ordem interna, para maior conhecimento das regiões governadas, quer externa, como instrumento auxiliar aos mercadores muçulmanos que cruzavam o mundo, ou então como descrição de regiões que não faziam parte do império. Como conseqüência quase natural, também os conhecimentos náuticos se incrementam, e rapidamente os muçulmanos ascendem à categoria de hábeis navegadores: entre seus legados ao Ocidente está a bússola. A teologia e a interpretação do Alcorão e demais textos canônicos conhecem extraordinário desenvolvimento, bem como a lexicografia e as ciências lingüísticas.
Proliferam os tratados retóricos, poéticos e políticos. Escrever sobre a arte de bem governar torna-se uma espécie de obsessão dos conselheiros de califas e sultões.
As ciências e a medicina não ficaram atrás nessa marcha. Os hospitais espalhados pelo mundo islâmico eram, em geral, de grande qualidade, e contavam com corpo médico qualificado. Conta-se que certo médico, tendo sido encarregado de escolher um local de Bagdá para a construção de um hospital, espalhou por vários pontos da cidade pedaços de carne fresca, e escolheu aquele em que ela mais demorou a se deteriorar: empirismo até hoje válido. Na matemática, criaram o conceito de álgebra e introduziram os algarismos, até hoje conhecidos como arábicos, por oposição aos romanos. A divulgação do “zero”, que mais do que mero algarismo é uma noção bastante complexa, foi de fundamental importância para os cálculos. A química e a astronomia também se desenvolvem, a partir da alquimia e da astrologia.
Não é à toa que muitas das estrelas e constelações carregam nomes árabes.
E, a partir do século IX, sob patrocínio do califado (e no interior de uma instituição oficial, a “casa da sabedoria”), a filosofia grega, com destaque para Aristóteles, é traduzida ao árabe. Esse fato é de capital importância, não só para a cultura islâmica como também para a ocidental, uma vez que foi a partir das traduções árabes divulgadas na Península Ibérica que os europeus retomaram o contato com a filosofia grega, então quase desconhecida, fato que teve notável influência sobre o Renascimento europeu.
Enfim, seria cansativo aqui enfileirar todas as realizações alcançadas durante os cinco séculos em que governaram os abássidas. O livro das 1001 noites, elaborado após a devastação de Bagdá, pode também ser lido como registro saudosista e obviamente fantasioso do período áureo da cidade.
A queda de Bagdá foi um sinal. Árabes e muçulmanos, então, encontravam-se cercados: do lado ocidental, os cruzados europeus; do oriental, os mongóis. Endurecidos, finalmente uniram forças e derrotaram ambos os inimigos. Essas vitórias foram, contudo, o canto de cisne daquela civilização. Nunca mais os árabes reassumiriam papel predominante na história da humanidade. Em suas próprias terras, passaram a sofrer o domínio dos turcos. No Egito, um grupo estrangeiro, curiosamente uma casta de escravos, os mamelucos, acaba tomando as rédeas do poder. Em 1492, outra catástrofe: Granada, o último estado árabe da Península Ibérica, é conquistado pelos reis cristãos de Aragão e Castela. Terminavam oitocentos anos de autonomia política muçulmana em al-Andalus. Por volta dessa época, os muçulmanos e sobretudo os árabes mergulham numa terrível fase de decadência, da qual somente começaram a emergir, ainda que parcialmente, no final do século XVIII. Mas suas realizações ao longo da história, mais do que simples memória, constituem para eles, de igual modo, tanto a certeza de que nada é definitivo como a esperança de dias melhores.
“UM BRASIL DAS ARÁBIAS”
A influência dos árabes e dos muçulmanos no Brasil pode ser pensada, basicamente, a partir de três linhas principais: pela herança árabe de Portugal; pelos escravos muçulmanos trazidos ao Brasil; e pela imigração árabe, em especial sírio-libanesa, que começa em finais do século XIX.
1) Em 711, os muçulmanos entraram na Península Ibérica, e ali permaneceram, com poder político, até 1492, e, sob total domínio cristão, até 1608, pelo menos. Assim, ora como dominadores, ora como dominados, interagiram com os povos da península durante novecentos anos. O resquício mais evidente dessa convivência é o grande número de palavras árabes no português e, sobretudo, no espanhol. Como exemplo, citemos algumas poucas: alface, guitarra, oxalá, até, Altair, Leila, Fátima, caramba, alvará, atabaque, zero, algarismo, álgebra, álcool, almirante, alcaide, ulemá, melancia, arroz, marfim, alfaiate, berinjela, aluguel, tambor, gazela, taça, almoxarifado, alfândega, mameluco, azeitona.
Existe igualmente a questão, ainda controversa, das relações entre a poesia árabe e a poesia ibérica. E não se deve esquecer que o estágio relativamente avançado de navegação em que Portugal e Espanha se encontravam deve-se ao conhecimento adquirido dos muçulmanos.
2) Embora, na maioria das vezes, tenham sido obrigados a adotar o cristianismo, os escravos muçulmanos trazidos ao Brasil mantinham muitas das práticas islâmicas, que acabavam se misturando às cristãs. Ainda não se definiu ao certo, no chamado sincretismo religioso da Bahia, por exemplo, quais são os elementos trazidos pelos negros muçulmanos e quais os elementos trazidos pelos negros animistas. O certo é que a presença de escravos muçulmanos, em todo o Brasil e sobretudo na Bahia, era intensa. Em 1835, a revolta dos negros muçulmanos, conhecidos como malês, deixou as autoridades baianas em polvorosa e desencadeou medidas repressivas contra os muçulmanos em todo o Brasil.
3) No início do século XX, a imprensa e a literatura árabe floresceram no Brasil, cultivadas pelos imigrantes recém-chegados do Oriente Médio: havia vários jornais em árabe, gráficas que publicavam nessa língua e escritores que aqui se exilaram e aqui produziam poesia e prosa de excelente qualidade.
Os árabes se destacaram como comerciantes, além de introduzir novos hábitos culinários que se incorporaram à cozinha brasileira mais tradicional.
Preocuparam-se sobremaneira com a medicina. Entre seus descendentes também encontramos intelectuais, políticos e artistas de renome. Entre os escritores, mencionem-se: Jamil Almansur Haddad, crítico, tradutor e poeta; Jorge Medauar, escritor; Tárik de Souza, crítico musical; Mário Chamie, poeta; Raduan Nassar e Milton Hatoum, dois dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, cujas obras (Lavoura Arcaica, Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, este último já traduzido ao árabe) tematizam e problematizam a imigração árabe ao Brasil.
“CARAVANA DE PRECONCEITOS”
Apesar de sua marcante presença no Brasil, a cultura árabe ainda é pouco conhecida entre nós. Além disso, muitas vezes os assuntos relacionados aos países árabes e à cultura islâmica são retratados de maneira estereotipada e preconceituosa pela imprensa escrita e pela televisão.
Leia atentamente o texto abaixo, escrito pelo intelectual palestino Edward Said. Após debater a questão com colegas e professores, pesquise em jornais, revistas e filmes o modo como os árabes são, em geral, retratados.
Em seguida, resuma suas conclusões em uma breve dissertação.
“Nos filmes e na televisão, o árabe é associado à libidinagem ou à desonestidade sedenta de sangue. Aparece como um degenerado super-sexuado, capaz, é claro, de intrigas astutamente tortuosas, mas essencialmente sádico, traiçoeiro, baixo. Traficante de escravos, cameleiro, cambista, trapaceiro pitoresco: esses são alguns dos papéis tradicionais do árabe no cinema [...] A maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais.
À espreita, por trás de todas essas imagens, está a ameaça da jihad [guerra santa]. Resultado: um temor de que os árabes tomem conta do mundo” [In: Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, p.291].
Boletim Mundo Ano 11 n° 1
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