O 2o Fórum Social Mundial (FSM), que se realizou em fevereiro, em Porto Alegre, é um sintoma de que “alguma coisa está fora da nova ordem mundial” como Mundo assinalou na sua edição de março. Nesta edição, voltamos ao tema. Aqui, dois integrantes da equipe de Mundo manifestam suas opiniões sobre o FSM. A idéia é estimular o debate, oferecendo argumentos contraditórios sobre o significado político do evento.
Fragmentos de ideologias
Demétrio Magnoli
O 2o Fórum Social Mundial tinha, em lugar de destaque da sua agenda, a “luta pela paz no mundo”. Sob esse temário, os participantes abordaram diversos conflitos internacionais mas não a principal guerra em andamento durante o próprio Fórum. A campanha liderada pelos Estados Unidos no Afeganistão, que então encontrava-se na fase de pesados bombardeios aéreos contra cidades e povoados, ficou fora da agenda do Fórum!
Incrível? Sim, se você acreditou que o evento é uma reunião plural e democrática de todas as correntes que se opõem à “globalização excludente” que é como o Fórum se apresenta para o público. Mas não, não é incrível, se o Fórum for analisado por aquilo que realmente é.
O Fórum é um instrumento da aliança entre a França que almeja ser potência global e o PT que almeja a certidão internacional de partido apto a governar. A França, desde Charles De Gaulle, procura recuperar uma influência mundial perdida com as duas grandes guerras do século XX e a descolonização afro-asiática. Hoje, nas condições adversas do pós- Guerra Fria, os herdeiros socialistas de De Gaulle batem-se contra a muralha da hegemonia global dos Estados Unidos. A candidatura Lula surge, para eles, como a promessa de uma parceria estratégica na América Latina.
O Fórum tem direção e funciona como instrumento ideológico da aliança entre os socialistas franceses e o PT. A sua estrutura organiza-se em dois pavimentos. O pavimento superior é formado por um comitê organizador que veicula as posições dessa aliança. Nele são tomadas as decisões relevantes. O Afeganistão não podia ser discutido pois uma declaração contrária à “guerra ao terror” de George W. Bush atingiria, diretamente, o Estado francês (isto é, atualmente, o governo socialista de Lionel Jospin), que participa da coalizão liderada pelos Estados Unidos e enviou tropas ao Afeganistão. Mais: não podia ser discutido pois Lula tem se dedicado a provar a Washington e aos organismos financeiros internacionais que está “apto” a governar o Brasil.
O pavimento inferior é formado por incontáveis Organizações Não-Governamentais (ONGs) e movimentos sociais. As discussões nesse pavimento conferem o colorido “plural” e “democrático” ao Fórum. Ali, há propostas de impor uma taxa aos fluxos internacionais de capitais (a Taxa Tobin), assegurar completa proteção tarifária aos produtores agrícolas franceses, proibir o plantio de transgênicos, realizar a reforma agrária no Brasil, controlar as remessas de lucros das multinacionais, impedir a criação da Alca, defender os direitos dos indígenas mexicanos de Chiapas entre outras centenas de idéias de organizações nacionalistas, camponesas e ambientalistas. São fragmentos de ideologias, que não formam uma visão coerente de futuro e, por isso, funcionam como balas de festim. Muito barulho, pouca eficácia.
O barulho do pavimento inferior tem utilidade para a direção. Confere ao Fórum a aparência de um caleidoscópio, de modo que cada um enxerga aquilo que gostaria de ver. Mas o Fórum não produz uma declaração política final. Assim, os fragmentos de ideologias do pavimento inferior não geram compromissos e a direção permanece com as mãos livres para governar como quiser, na França ou no Brasil.
Os dirigentes do Fórum se propõem a fazer a crítica da globalização e do que chamam de “pensamento único”.
Mas não suportam que o próprio Fórum seja interpretado como um fenômeno que se inscreve no campo da política e que está, portanto, sujeito à crítica. Quando isso acontece, rotulam os críticos de “lacaios de Washington”, ou “da mídia global”.
Assim, provam que estão “aptos” no pior dos sentidos – a governar.
Um outro mundo é possível
Jorge de Almeida
Um outro mundo é possível”, o lema do 2o Fórum Social Mundial parece ter incomodado muita gente. A grande imprensa, cada vez mais ocupada na promoção dos reality-shows, tratou o encontro como uma festa de desocupados inconseqüentes.
Vários políticos acusaram o fórum de ser, no fundo, “um evento político”.
Articulistas bem e mal intencionados cobraram dos participantes “teses conclusivas” e “propostas viáveis”. Burocratas e tecnocratas desdenharam a “falta de bom senso econômico” das mais de 4,9 mil Organizações Não-Governamentais (ONGs) representadas em Porto Alegre, enquanto acadêmicos ingênuos se esforçaram em descobrir os “reais interesses” por trás do encontro, denunciando a ingenuidade dos quase 80 mil participantes que teriam servido como “massa de manobra” na mão de partidos nacionais e estrangeiros.
Todas essas críticas apenas reafirmam a necessidade e importância do Fórum Social Mundial. Começando pela imparcialidade e superficialidade da cobertura jornalística, que demonstra a urgência do debate sobre a democratização da mídia e defesa da liberdade de expressão na Internet, em um mundo onde quatro grandes corporações controlam grande parte da informação difundida pelo globo. O showrnalismo (para usar um termo de José Arbex) ignora ou simplesmente distorce eventos baseados na discussão aprofundada de temas realmente relevantes. Um dos eixos do debate em Porto Alegre buscava justamente refletir sobre possíveis alternativas de difusão de idéias e notícias não veiculadas pelos “novos cães de guarda”.
Por essa e várias outras razões o Fórum Social Mundial foi, de fato, um evento político. E no significado mais profundo do conceito, que designa justamente a reflexão cotidiana sobre os diversos sentidos da participação pública em um mundo onde a palavra “política” costuma ser empregada como termo pejorativo.
Os que esperam propostas e teses imediatas e definitivas contribuem para que isso ocorra, pois consideram perda de tempo o debate de questões “políticas” por representantes da sociedade civil, que estão justamente resistindo contra os que atualmente possuem o poder para impor teses e soluções definitivas, apesar de desumanas e autoritárias.
Os defensores do suposto “bom senso econômico”, reunidos no Fórum Econômico Mundial de Nova York, convidaram o roqueiro Bono Vox para discutir o problema da fome na África. A imprensa adorou. Em Porto Alegre, os representantes de comunidades africanas trocaram idéias e experiências com outros povos na mesma situação, abrindo assim o caminho para aquilo que o geógrafo Milton Santos chamava de “uma outra globalização”, capaz de desmascarar esse falso “bom senso”, que produz miséria e desigualdade em níveis insuportáveis e defende práticas econômicas ecologicamente suicidas.
O fórum, ocasião para o amplo debate democrático desses temas, apela ao verdadeiro bom senso afirmando que a sociedade e a economia não estão baseadas em “leis eternas e imutáveis”, mas sim são fruto da história, que cabe aos homens transformar. Isso incomoda os que percebem no encontro apenas o jogo de interesses de determinados países, sem entender que são justamente as tensões e contradições que, em um evento como o fórum, dão vida ao sentido pleno da prática democrática.
Diante de todas essas críticas, surge a certeza de que o Fórum Social Mundial está no caminho certo, pois “um outro mundo”, além de sem dúvida possível, é hoje, antes de tudo, necessário.
Boletim Mundo Ano 10 n° 2
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