Um dos egos mais inflados da história da arte, El Greco, o pintor nascido na Ilha de Creta que fez carreira na Espanha, levou uma vida repleta de opulência, mistério e polêmica. Morreu com uma única certeza: ter sido um gênio de vanguarda
Por Mariana Sgarioni
"Aqui jaz o grego de quem a natureza aprendeu a arte.” O epitáfio não poderia ser mais apropriado para descrever a vida de alguém que se achava acima do bem e do mal. Se houve uma certeza que Domenikos Theotokopulos sempre manteve em sua vida foi a de sua incrível genialidade – mesmo quando os outros o chamavam de louco e incompetente, ou divulgavam que as figuras deformadas e estranhamente assimétricas que pintava não eram seu estilo, mas fruto de uma doença na visão, o astigmatismo.
Tanto confiava no próprio taco que poucos teriam o peito que ele teve, lá pelos idos de 1570, ao apreciar pela primeira vez a Capela Sistina: “Michelangelo pode ser uma excelente pessoa, mas nada entende de pintura. Se jogarem fora toda essa obra, eu poderei refazê-la com mais honestidade e decência”, teria dito em alto e bom som. Pronto. Causou tanta antipatia no meio artístico que foi enxotado de Roma, onde triunfava a pompa cardinalícia, e ficou tido e havido como pintor maldito durante quase 300 anos. Suas formas e cores não naturais foram tão criticadas que chegaram a ser consideradas piadas de mau gosto.
Seu nome só começou a ser lembrado com relevância a quase 350 anos de sua morte, quando artistas e críticos modernos passaram a defender que não deveria se aplicar os mesmos padrões de “correção” a todas as obras de arte. Picasso foi um desses artistas e, em grande medida, responsável por chamar a atenção para importância da obra de El Greco, chamando-o até mesmo de “o primeiro cubista” .
E olha que esse era o maior elogio que Picasso – outro artista famoso pelas exageradas proporções de seu ego – poderia fazer a alguém. “El Greco viveu numa época em que o normal era reproduzir a realidade, como se o quadro fosse transparente: uma janela para se olhar através”, afirma Rodrigo Naves, professor de história da arte e autor do livro O Mundo Turvo, sobre a obra de El Greco. “Mas ele usava a pincelada para estruturar o quadro, ousando turvar essa transparência.” Parece complicado, não é mesmo? Mas, na verdade, isso significa simplesmente que ele pintava coisas que ninguém via. Nem ele mesmo. E isso era uma temeridade no século 16.
Domenikos Theotokopulos partiu de Creta (então uma possessão veneziana) e, em 1560, com 19 anos em direção da maior cidade que ouvira falar: Veneza. Ali, foi aprendiz no ateliê do mestre renascentista Ticiano e conheceu Tintoretto, outro dos grandes artistas da época. Deste, deve ter herdado os maneirismo, além do pouco caso pelas formas e cores e as visões dramáticas e apaixonadas por temas bíblicos. Permaneceu na cidade pouco mais que meia década, quando seguiu para Roma. Chegou à cidade dos papas com uma carta de recomendação de Ticiano. Sobre a proteção do cardeal Alessandro Farnese conseguiu algumas encomendas da corte romana e assinou suas primeiras obras como Dominico Greco. Tudo parecia ir muito bem até que a polêmica declaração sobre a obra do mestre dos mestres Michelangelo desviasse seu caminho do estrelato. Foi como se o Robinho, jovem jogador de futebol do Santos, dissesse que Ronaldinho, o Fenômeno, é perna-de-pau. Dominico passou de jovem promessa a maldito quase imediatamente.
Assim, ele partiu para a Espanha. Sua idéia era se instalar em Toledo, a cidade que, apesar de estar decadente (fora capital do país até 1561, quando foi substituída por Madri), estava construindo o mosteiro de Escorial, o que significava boas oportunidades de trabalho para os artistas italianos. Mas antes passou por Madri, onde reinava o poderoso Felipe II, líder espanhol da Contra-Reforma – o movimento da Igreja Católica para barrar o avanço do protestantismo na Europa, que gerou iniciativas tão ambíguas quanto universidades e tribunais de inquisição. Assim, conhecido por presidir cenas de torturas e ter ordenado a morte de seu próprio filho, Felipe também era famoso por patrocinar a arte e a cultura espanhola. Domenikos, então Dominico, resolveu assumir o codinome El Greco (que com o artigo espanhol e o substantivo italiano, queria dizer que ele não era uma coisa nem outra).
Ganhou a simpatia de membros da corte e o próprio rei lhe pediu que pintasse O Martírio de São Maurício para ocupar um lugar nobre na basílica do Escorial. “Felipe queria algo bem sangrento, borbulhando cenas de horror. Literalmente um martírio”, afirma Keith Chrstiansen, curador de arte européia do Museu Metropolitan, de Nova York, que recentemente – em janeiro de 2004, encerrou a maior mostra de obras do artista dos últimos 20 anos. E eis que El Greco mandou ver numa obra que mostrava pessoas serenas, sem traços de alarme ou de medo.” Contrariado, Felipe II pagou o trabalho, colocou-o num espaço bem escondido e encomendou outra tela com o mesmo tema para outro artista.
Em 1577, depois do episódio, não se sabe se por ordem do rei Felipe ou por iniciativa própria, o grego partiu para Toledo, de onde nunca mais sairia até sua morte. Com o único dinheiro que lhe restara – o do pagamento do rei –, alugou nada menos do que o palacete do conde de Villena, o mais belo e suntuoso da cidade. Mas, assim que chegou, foi chamado pela Inquisição. Segundo o historiador, quando foi perguntado sobre quem era e o que fazia em Toledo, teria respondido: “Não sou obrigado a lhes dizer por que estou aqui”.
Mas o talento de El Greco triunfou em Toledo. Sua primeira encomenda foi um conjunto de pinturas para a igreja de São Domingos. O desenho dos altares foi feito no estilo do arquiteto veneziano Palladio. O quadro realizado para o altar-mor, A Assunção da Virgem, marca um novo período na vida do artista: a influência de Michelangelo – quem diria! – começa a aparecer nos seus desenhos de figuras humanas. Somando-se a isso algumas técnicas venezianas, ele inaugura um estilo próprio e novo, com diferentes intensidades das cores e contrastes. “Nessa fase, desenvolveu até o máximo as potencialidades de sua arte. As influências de Tintoretto e Michelangelo foram aliadas ao seu estilo intrigante e absolutamente pessoal: o resultado são figuras alongadas em forma de chama, geralmente pintadas em cores frias, lúgubres e azuladas, expressando um intenso sentimento religioso”, diz Rodrigo Naves.
Seu prestígio cresceu ano após ano. Encomendas não paravam de chegar de todas as regiões da Espanha, e ele precisou contratar ajudantes para dar conta do recado. Segundo o professor de história da arte Francisco Calvo Serraller, da Universidade Complutense de Madri, autor de O Enterro do Conde de Orgaz (livro homônimo de uma das mais célebres telas de El Greco, pintada entre 1586 e 1588, e ainda é inédito no Brasil, El Greco enriqueceu e era capaz de pagar pequenas fortunas para músicos animarem seus jantares todas as noites. No auge da fama, nada assustava ao poderoso artista. Nem mesmo a Inquisição. Quando pintou Espólio, em 1579, para a catedral de Toledo, El Greco foi novamente chamado a depor. Tudo porque não colocou a coroa de espinhos na cabeça de Jesus.
O artista renegou a intervenção eclesiástica em sua obra. “Ele dizia que se os inquisidores só poderiam dar palpites em suas obras se pagassem por elas”, afirma Serraler. E parece que eles gostaram da idéia. Entre os diversos retratos que El Greco produziu nos anos seguintes figuram vários cardeais inquisidores.
Diferentemente das cenas bíblicas e imagens de santos e apóstolos, nos retratos ele era extremamente fiel à realidade. Foi assim que pintou diversas vezes sua modelo predileta, a esposa Jeronima de las Cuevas, com quem viveu durante todo o tempo em que esteve em Toledo. Mãe de seu único filho, Jorge Manuel, o rosto de Jeronima era presença obsessiva nas obras de El Greco, figurando de trágicas madonnas a piedosas madalenas.
Levando uma vida suntuosa – sua casa tinha 24 quartos –, quem podia imaginar que El Greco passasse por dificuldades financeiras? Gastando sempre mais do que ganhava, ele se envolveu em inúmeros processos por perdas e danos. Após a morte de Jeronima, seus problemas financeiros se acentuaram e a saúde começou a se debilitar. Esse período, os últimos 15 anos de sua vida, foi um dos mais profícuos para sua criação. Quanto mais doente estava, mais acentuava- se a característica verticalidade de suas figuras e os ritmos das linhas baseadas na elipse, na pirâmide, na espiral. E mais a crítica o considerava louco.
Morreu, em 1614, literalmente na miséria – mas ninguém desconfiava. No seu palacete, havia apenas oito cadeiras, uma mesa, uma escrivaninha e dois cofres. Dentro deles, dois lençóis e sete toalhas. Nos armários, apenas três camisas. Ele não sacudiu o mundo da arte, não deixou discípulos ou herança. E seu ousado talento foi esquecido poucos anos depois de sua morte.
Genialidade reconhecida
El Greco caiu no esquecimento pouco depois que morreu. Apenas cerca de 150 anos após sua morte, o romantismo francês – tendo à sua frente Delacroix e, mais tarde, o poeta Baudelaire – reabilitou o artista grego-italiano-espanhol e legou seu entusiasmo aos impressionistas, que nele admiraram o abandono da tendência imitativa em favor da poetização do tema. De acordo com o professor de história da arte Rodrigo Naves, foi pelos românticos que, na segunda metade do século 19, os trabalhos de El Greco ganharam importância e começaram a ser expostos no Museu do Louvre, em Paris. O surrealismo e o expressionismo também viriam a aproveitar suas idéias de transmutação do real em irreal, de deformação do corpo humano e o emprego da cor como característica emotiva. Aliás, El Greco já deixava claro que a cor era mais importante do que o desenho em pleno século 16. Conheça alguns de seus admiradores confessos.
PAUL CÉZANNE (1839-1906)
Segundo o crítico francês Jean-Pierre Cartier, no início de sua carreira, Cézanne viu uma reprodução da tela A Dama de Casaco de Pele em um jornal e ficou apaixonado pelos traços de El Greco. Em seus retratos, Cézanne chegou a se inspirar nesses traços
PABLO PICASSO (1881-1973)
Declarou diversas vezes que usou O Quinto Selo do Apocalipse, que dissolve o espaço e distorce as formas, como inspiração para sua Les Demoiselles d’Avignon. Para ele, El Greco seria um precursor do cubismo, movimento inaugurado séculos depois, pelo próprio Picasso, caracterizado pelo recorte dos corpos e boa articulação entre a figura e o fundo
JACKSON POLLOCK (1912-1956)
O artista, mestre da escola abstracionista americana do século 20, era um dos seus mais fervorosos admiradores de El Greco. No início da carreira, produziu diversos estudos com base em telas do grego. Cinco desses desenhos foram recentemente expostos no Metropolitan Museum of Art, de Nova York. Segundo Philippe de Montebello, diretor do Metropolitan, três telas teriam servido como principal inspiração para os desenhos de Pollock: A Anunciação, O Quinto Selo do Apocalipse e Laocoon.
Aventuras na História Edição 006 Fevereiro de 2004
Sei que fizeram comentarios a respeito desta escola, mas também sei que existe profissionais competentes nesta escola. Estou na Califórnia, mais precisamente São Francisco. estudei nesta escola e devo muito a três professores o Mauricio, o Clésio e ao João. Estas pessoas que me fizeram crescer e hoje estou aqui graças a perseverança destes 3 e amizade. Parabéns pelo blog. que Deus ilumine cada professor desta escola e em especial o Clesio, o João e o mauricio.
ResponderExcluirum abraço