Márcia Padilha
J á existe uma geração para a qual as lembranças da infância ou da adolescência passam pelas aventuras vividas entre luzes, escadas rolantes, espelhos, sons eletrônicos e o odor típico das praças de alimentação dos shopping centers. É a mesma geração que deixou de aventurar-se de ônibus descobrindo cantos e recantos de suas cidades, que não andou de um lugar a outro à noite, sentindo a garoa ou a brisa do mar, que não dirigiu automóveis sentindo a liberdade do vento no rosto pois os vidros já não estão abertos.
O shopping, equipamento urbano típico das cidades contemporâneas, é um fenômeno bastante recente. No Brasil, está indissociavelmente relacionado à violência urbana e, acima de tudo, à desvalorização do espaço público em privilégio do privado.
Discutindo a temática urbana, na obra Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun (São Paulo, Unesp, 1998), Jacques Le Goff afirma ser “a sociabilidade, o prazer de estar com o outro, o que estabelece em definitivo a diferença urbana, a urbanidade”.
O historiador francês ressalta as quatro funções básicas que permitem que a cidade seja o locus da sociabilidade: troca, segurança, poder e inovação.
Desde a Alta Idade Média respeitando-se as particularidades históricas e regionais a formação das cidades é moldada a partir de ideais de convivência e diálogo (troca), de proteção e conforto (segurança), da justiça e do bem comum (poder) e, finalmente, de beleza, pujança e lazer (inovação).
A metrópole de meados do século XIX antecessora direta da cidade atual foi o cenário de profundas idealizações, tanto dos que comungavam o chamado ideal burguês civilizatório como dos que alimentavam esperanças de uma organização social radicalmente nova, como anarquistas e socialistas.
Uma espécie de exaltação da sociabilidade e da paisagem urbana foi responsável pela construção das mais belas edificações e de projetos de remodelação de cidades inteiras. Entre as inovações urbanas notáveis destaca-se a reurbanização de Paris, com a criação de praças e bulevares pelo arquiteto Haussmann (entre 1854 e 1883); a criação das edificações desconcertantes de Antonio Gaudí e dos modernistas em Barcelona (entre 1850 e 1925); a construção do Empire State em Nova York (1931). Um pouco mais tarde, a construção de Brasília (1956-60) colocou o Brasil na rota das inovações arquitetônicas embaladas pelos sonhos urbanos.
O crescimento da cultura do consumo e a criação de grandes magazines também foram importantes agentes de inovação nas cidades modernas, além de representarem oportunidades de encontros e trocas. As lojas sofisticadas eram espaços de encantamento e fascínio, do flanar pelas ruas olhando pessoas e vitrines, num clima próprio que inebria e rompe a mesmice do cotidiano. No Brasil, as casas comerciais, assim como os teatros, cafés e cinemas, eram os pontos de encontro de cidadãos.
Desde o começo do século XX, a sociabilidade nas maiores cidades tropicais se dava no ir e vir por entre as ruas ainda pouco pavimentadas.
No entanto, glamour e prazer não são os únicos ingredientes para a manutenção de uma cidade.
O estabelecimento do poder público e de um pacto social que o legitime é condição essencial para a viabilidade da convivência civilizada. A criação de leis e regras foi a condição que possibilitou o fascínio da experiência na cidade moderna. Mas foi, por outro lado, fonte de revoltas e protestos. No Rio de Janeiro, por exemplo, a obrigatoriedade da vacina contra a febre amarela, em 1904, criou tamanha antipatia pela ação dos agentes de saúde pública os representantes do conforto e da segurança que a campanha de vacinação resultou em revolta popular, com barricadas nas ruas e prisões.
Nos diferentes países, a ordenação dos espaços públicos ocorreu a partir das soluções adotadas para diminuir ou regulamentar as tensões entre grupos e interesses.
Um conjunto cada vez mais complexo de regras e normas passou a sustentar a ação do poder público para a manutenção da cidade como espaço de segurança, de trocas entre pessoas e de respeito à inventividade das modas, dos hábitos e dos prazeres urbanos. A cidade é, assim, o palco de um ensaio de civilidade.
Mas, que fissuras podem colocar em risco o imbricado ecossistema social urbano? Em cidades e países onde os pressupostos básicos do pacto social vêm sendo rompidos, poucas chances há de o cidadão reconhecer-se em um espaço urbano esvaziado naquilo que ele tem de essencial.
O shopping center, na condição de espaço ao mesmo tempo público e privado, é o reflexo das fissuras existentes em uma sociedade que não tem conseguido mecanismos eficientes para salvaguardar as funções básicas da cidade e que, por isso, tem sido dominada pelo medo. Medo de ter suas liberdades desrespeitadas, sua segurança posta em risco, suas trocas limitadas e que não reconhece no poder estabelecido a garantia de sua segurança.
Muitas das funções antes desenvolvidas nos espaços públicos, têm lugar hoje dentro do shopping center. A possibilidade de vivenciar ali algumas das quatro funções básicas da cidade cria uma inquestionável sensação de liberdade, longe da insegurança das ruas. Órfãos de nossas cidades, sentimos o shopping como um grande parque de diversões no qual podemos gozar as vantagens do mundo urbano.
Desse ponto de vista, o shopping é produto da sociedade que aceitou o fracasso do pacto que deveria manter os espaços públicos como esferas do gerenciamento democrático de conflitos, de trocas e de beleza. O shopping expõe a fragilidade dos aparatos institucionais que sustentariam, democraticamente, a convivência urbana. Portanto, ao contrário do que muitas vezes sentimos, o shopping não é, absolutamente, uma solução ao problema da violência urbana é a renúncia ao ideal urbano.
Não tanto um parque de diversões, mas um bunker.
Boletim Mundo Ano 10 n° 2
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