Como nas cidades da Pensilvânia e Ohio onde há indústrias siderúrgicas, em Elsh, no Luxemburgo, ainda há uma gigantesca e antiga indústria do ramo na velha tradição: minério de ferro em um extremo, gigantescos fornos para fundição no centro e produtos acabados no outro extremo. Mas há no mínimo uma diferença. Existe ainda um número muito grande de siderúrgicas antigas funcionando nos Estados Unidos e indo à falência em um ritmo alarmante. A de Elsh foi desativada em 1997 e é hoje um monumento histórico. Há cinco anos foi instalada, num prédio ao lado, uma mini siderúrgica que derrete sucata de aço e tem uma produção quase equivalente à da antiga siderúrgica, por uma fração do custo. A força de trabalho foi reduzida de 5 mil empregados na década de 70 para mil, atualmente.
(Edmund L. Morris, The New York Times, 27/3/2002)
Os Estados Unidos são, de longe, o maior importador de aço do mundo. Mas, no início de março, a administração Bush estabeleceu um sistema que limita e regulamenta rigidamente as importações siderúrgicas. O pacote protecionista está estruturado sobre cotas e tarifas. Cada país só pode exportar uma cota definida de cada tipo de produto siderúrgico para o mercado americano. E os produtos exportados são onerados por tarifas variáveis, que chegam a 30% no caso dos aços planos.
George Bush apresentou-se, na campanha eleitoral, como defensor inflexível do livre comércio. Essa imagem já tinha sido seriamente arranhada pelo conteúdo restritivo da Trade Promotion Authority (TPA) negociada entre o presidente e o Congresso.
A TPA é a lei que autoriza o presidente a firmar acordos comerciais, como o da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). De acordo com ela, a Alca só poderá existir se não mexer no arsenal de medidas protecionistas unilaterais dos Estados Unidos e nos generosos subsídios concedidos a seus agricultores. As restrições ao livre comércio são tantas que os cínicos preferem denominá - la “Trade Prevention Authority”.
O pacote siderúrgico demoliu a retórica do livre comércio da Casa Branca.
Parceiros comerciais americanos não esconderam a indignação. O Japão e a Coréia do Sul, grandes exportadores de aço, apresentaram queixas junto à Organização Mundial de Comércio (OMC). A Rússia, maior exportador mundial, que ainda não faz parte da OMC, tenta reagir a prejuízos de até 400 milhões de dólares anuais bloqueando, sob esfarrapadas alegações sanitárias, as importações de frango americano.
Mas o eixo da “guerra do aço” encontra-se na reação européia. A União Européia (UE) abriu processo contra o pacote americano na OMC e, quase simultaneamente, também estabeleceu o seu próprio pacote protecionista, definindo cotas e sobretaxas que ficarão em vigor por um mínimo de 6 meses.
A siderúrgia relocalizada
A “guerra do aço” é um fruto das tendências de relocalização industrial impulsionadas pela globalização. Nas últimas décadas, a estrutura industrial dos países desenvolvidos foi profundamente transformada pela revolução tecno científica. Os investimentos concentraram-se nas indústrias de alta tecnologia como as de informática, telecomunicações, aeronáutica e biotecnologia. Enquanto isso, as indústrias tradicionais – baseadas no uso intensivo de matérias-primas, energia e mão-de-obra perdiam espaço para concorrentes asiáticos.
A produção mundial de aço cresceu vertiginosamente ao longo do século XX, mas entrou em estagnação há mais de uma década.
Em 1989, o total global atingiu 786 milhões de toneladas métricas. Hoje, permanece mais ou menos no mesmo patamar. A estagnação reflete a reorientação industrial promovida pela revolução tecno científica.
Entretanto, a distribuição da produção siderúrgica conheceu mudanças substanciais. Os países desenvolvidos, de modo geral, perderam participação na produção global, assim como a Rússia e a Ucrânia, que sofreram as conseqüências econômicas devastadoras do colapso da União Soviética.
Por outro lado, a produção de países subdesenvolvidos asiáticos China, Coréia do Sul e Índia – experimentou forte incremento.
O maior salto foi o da China, que ultrapassou o Japão e os Estados Unidos e se tornou, de longe, o maior produtor mundial .
Nos países desenvolvidos, a siderurgia integrada tradicional, que transforma o minério de ferro em gigantescos fornos, perdeu competitividade em função dos altos custos de produção. Na Europa e, num ritmo mais lento, nos Estados Unidos as empresas ingressaram em processos de fusão e consolidação. Ao mesmo tempo, as sub-siderúrgicas integradas estão sendo fechadas e substituídas por mini-siderúrgicas que derretem sucata de aço. A força de trabalho empregada reduziu-se drasticamente. Em 1974, os países da atual UE, os Estados Unidos e o Japão tinham, em conjunto, quase 2 milhões de trabalhadores siderúrgicos.
Em 1990, o total tinha se reduzido para menos de um milhão. Atualmente, gira em torno de 600 mil .
A siderurgia integrada está se tornando uma especialidade de um grupo de países subdesenvolvidos industrializados China, Coréia do Sul, Brasil e Índia. Nesses países, os custos de produção mais baixos garantem a eficiência e a competitividade.
Mas a modernização tecnológica também faz a sua parte: no Brasil, a siderurgia emprega cerca de 63 mil trabalhadores, praticamente a metade dos 115 mil de 1990.
Inovação tecnológica e protecionismo
A relocalização global da siderurgia só não ocorre mais rapidamente ainda em função do protecionismo praticado pelos países desenvolvidos. Nesse item, os campeões são os Estados Unidos. Desde a década de 80, Washington impõe restrições “voluntárias” às exportações siderúrgicas de seus parceiros comerciais. Roberto Gianetti da Fonseca, secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior (Cacex), avalia que o Brasil “poderia estar produzindo o dobro ou triplo do aço que produz hoje” se não houvesse aceitado as tais restrições.
A siderurgia participa de um quadro mais amplo de reconversão econômica global, que gera uma nova divisão internacional do trabalho. Os países desenvolvidos especializam-se nas indústrias da revolução tecno científica. Os países subdesenvolvidos industrializados, nas indústrias oriundas de ciclos de inovação anteriores.
Os Estados Unidos e a União Européia têm definido as suas políticas comerciais no contexto da reconversão econômica global. De um lado, forçam a eliminação de barreiras para os produtos de alta tecnologia. De outro, erguem muralhas de cotas e tarifas para produtos das indústrias tradicionais, a fim de proteger as empresas domésticas e, em certos casos, os resquícios de uma classe operária em vias de extinção .
Proteção de mercado, quando o que está em jogo são os produtos dos outros. Livre comércio? Isso é para os meus produtos.
Boletim Mundo Ano 10 n° 3
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