quinta-feira, 31 de março de 2011

ÍNDIA: MISÉRIA QUASE CORDIAL

ÍNDIA: MISÉRIA QUASE CORDIAL
Gilson Schwartz
Macacos. Ratos. Elefantes. Camelos. Pombos. Vacas. Porcos. Najas. Mulas. Cabritos. Galinhas. Carros.
Motos. Bicicletas. Ônibus. Carroças. Riquixás motorizados. Riquixás puxados por esquálidos.
Riquixás pedalados por esquálidos. Gente fazendo suas necessidades nas ruas. Gente tomando banho nas ruas. Gente dormindo ao relento. Favelas. Conjuntos habitacionais.
Saris multicoloridos. Milhares de pequenos negócios incrustados em ruelas. Vendedores ambulantes. Grandes magazines. Comilanças nas calçadas. Crianças sujas correndo por todos os lados. Fumaça, muita fumaça.
Calor tropical.
Rostos quase negros. Barbas asiáticas. Olhares tristes. Sorrisos raros.
Turbantes em formas surpreendentes. Véus coloridos quase ocultando olhos sensuais. Brâmanes seminus.
Palácios abandonados. Pontos turísticos mal conservados. Estradas sem sinalização. Em caminhões e riquixás, o aviso: “buzine, por favor!” Barulho, muito barulho.
De repente, o enorme caminhão bate de leve no carrinho da frente.
Acidente leve, milhares de carros parados, aquele tipo de colisão freqüente em congestionamentos. Do carrinho sai um sujeito relativamente bem vestido, que sobe na cabine e de lá arranca o motorista mais escuro, mal vestido a atarracado. Dá-lhe uma surra. O motorista não revida, ninguém intervém: o motorista é pobre.
Dos quase um bilhão de habitantes, 10% de muçulmanos. Massacres sanguinários são freqüentes. Nas cidades, enormes outdoors convocam para a luta contra o terrorismo. O racismo é latente numa sociedade marcada pela diversidade étnica e pela extrema desigualdade.
A miséria na Índia é quase cordial. Depois de duas semanas viajando por cidades do sul e do norte (Bangalore, Mysore, Nova Delhi, Jaipur), o Brasil passa rapidamente para a categoria de país quase desenvolvido.
Mas, enquanto a miséria brasileira produz uma violência cotidiana, diretamente associada à luta pela sobrevivência física, os indianos parecem acomodar-se melhor à própria miséria.
A violência brasileira é, muito freqüentemente, individualista. É um recurso extremo que gera organizações (Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, etc.) mas que é predominantemente dispersa. Na Índia, uma miséria que parece ainda mais intensa não se traduz em criminalidade e a violência é coletiva, étnica, racista.
Mesmo em cidades como o Rio de Janeiro, onde as favelas estão próximas, senão contíguas, aos prédios da elite, há uma demarcação de territórios. Nas cidades da Índia, a miséria se esparrama por todos os lugares e não é fácil distinguir centro de periferia. Tudo é periferia, com exceção das áreas governamentais, fortemente protegidas pelo aparato militar.
Nas grandes praças, o povo passeia e dá mostras de uma docilidade quase infantil, rompida apenas por episódios de violência coletiva que regularmente chegam aos jornais. Viajando com uma esposa loira de olhos azuis, fomos obrigados a parar dezenas de vezes para tirar fotos com jovens indianos.
Em alguns casos, a fila era grande e só conseguíamos nos afastar, assustados, aos gritos, tamanha a curiosidade que o ocidental típico  ainda desperta.
A alta tecnologia – bomba atômica, produção de software convive na Índia com uma pobreza de proporções tão alarmantes que se perde a esperança de solução. Antes de conhecer a Índia tão de perto, minhas informações eram de caráter principalmente econômico e tecnológico. Ao contrário de países como o Brasil (e outros da América Latina) e mesmo da Ásia (como Tailândia e Coréia do Sul), a Índia não sofreu tanto com as crises financeiras dos últimos anos. Muitos economistas ressaltam o caráter mais fechado da economia indiana, suas políticas menos ocidentalizantes apesar das reformas liberais que também ali foram  implementadas. Depois de viajar pelo país, tenho a impressão de que essa resistência à globalização é fruto não apenas de escolhas políticas, mas de uma cultura peculiar que é incompatível com o padrão ocidental de organização de cidades e governos. Por mais que os jovens sejam seduzidos pela atração fatal da loira ocidental de olhos azuis.
Um pequeno conto, “Jardim”, escrito por R. K. Narayan, resume bem o cenário. Um vendedor de fertilizantes resolve, finalmente, fechar as portas e cercas de sua propriedade, antes visitada cotidianamente por vacas, mendigos, corvos e outros animais. Decidido a cultivar um jardim, ele começa a atirar nos corvos, bloqueia a entrada de vacas e até impede grupos de passar pela propriedade, antes usada como parte de um atalho nos caminhos do vilarejo. O resultado é a falência de seu negócio de venda de fertilizantes, até que ele resolve liberar o acesso ao seu terreno. Tarde demais.
Ele já havia perdido o emprego e só se recuperaria dois anos depois. Moral da história: se você achar que a grama de seu jardim está muito seca, deixe estar, nunca tente plantar  rosas nesse lugar.
O conto é emblemático. A propriedade privada existe, mas há um caldo de cultura em que a coletividade vem para primeiro plano – uma coletividade formada não apenas por pessoas mas também por animais e plantas.
A tentativa de organizar esse espaço a partir de um projeto individual está condenada ao fracasso. É melhor se acostumar com as vacas e os mendigos. E sair para as ruas preparado para um festival  de cores, sons e cheiros que variam do apetitoso ao nauseante.
A imagem de um homem que fracassa ao tentar cultivar um jardim em sua casa se aplica às cidades e ao país. Há fronteiras pouco nítidas, para um turista ocidental, entre a riqueza e a miséria, a beleza e o horror, o progresso e a ruína: tudo convive em todos os lugares.
Boletim Mundo Ano 11 n° 1

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