Osmar Freitas Jr.
Disseminando o medo do terror, Bush e Ashcroft ampliam os poderes de exceção, suprimem liberdades individuais e públicas asseguradas pela Constituição e ignoram o Congresso.
Elizabeth McGary, 28, foi barrada pela segurança do aeroporto La Guardia, em Nova York no início de agosto, ao tentar embarcar no vôo que a levaria para Chicago. Estava acompanhada de uma tropa de três filhos: um bebê de seis meses, e um casalzinho com 2 e 3 anos de idade. Levava também três mamadeiras – a refeição da caçula. As garrafas pareceram suspeitas aos guardas. Para provar sua inocência e a prosaica qualidade do líquido que transportava, McGary foi obrigada a tomar uma golada de cada biberão. Diante de uma fila de passageiros estarrecidos, ela bebeu a substância: seu próprio leite. Bem vindo aos Estados Unidos pós 11 de setembro de 2002.
Depois dos atentados terroristas da Al Qaeda, vieram os atentados aos direitos dos cidadãos. Na esteira do carrossel de paranóias do país de George W. Bush, chegou a carga pesada do pacote de leis de segurança interna, passado com maioria ovina no Congresso, cujo Senado tem liderança da oposição democrata. Trata-se da maior coleção de restrições legais às liberdades individuais e públicas em uma nação que, até 10 de setembro, manteve por mais de 200 anos uma das constituições mais democráticas do mundo.
O exemplo de Mrs. McGary seria apenas ridículo, não fosse a tragédia imposta ao cotidiano dos que vivem – ou entram – nos Estados Unidos. O pontapé inicial neste jogo autoritário foi dado já no dia seguinte aos ataques que demoliram as torres do World Trade Center. Um arrastão, em escala nacional, levou para a jaula cerca de 800 pessoas, que ficaram incomunicáveis – e, portanto, sem o direito constitucional aos serviços de um advogado. Seu “crime” – embora na maior parcela dos casos, nenhuma acusação formal tenha sido registrada era o de ser (ou parecer) estrangeiro. Ou seja: quem era marronzinho; ou tinha um nariz mais aquilino; um pixaim indomável, foi pro xilindró.
O tempo mostrou que pouco importa a cidadania do suspeito. Pelo menos três americanos de carteirinha estão sendo mantidos em prisão militar, sem representação de advogados e sem acusação formal. Isso, a despeito do presidente Bush ter se comprometido, em discurso transmitido nacionalmente, a não usar o estabelecimento de tribunais especiais contra cidadãos americanos. Esses tribunais, autorizados há meses, são cortes militares nas quais os processos não obedecem aos padrões judiciais normais do país e as provas de acusação permanecem parcialmente secretas.
Teoricamente, na democracia americana, o Executivo deve prestar contas de suas atividades ao Congresso.
O Congresso formulou uma série de 50 perguntas ao Departamento de Justiça, na tentativa de averiguar como estão sendo usados os novos poderes presidenciais extraordinários dados pelo “Ato Patriótico”, um conjunto de leis propostas pelo governo Bush que está com aprovação final ainda pendente. As questões se concentram, particularmente, nas medidas de vigilância secreta sobre cidadãos, como grampos em telefones, confisco de dados de bibliotecas e organizações de imprensa, além de intimações para prestação de depoimentos. O Comitê de Inteligência da Câmara dos Representantes um órgão bipartidário – está esperando até agora. O secretário da Justiça, John Ashcroft, simplesmente se negou a fornecer as informações requeridas.
“O Executivo não tem o direito de escolher a qual comitê legislativo irá prestar contas”, explica o professor Harold Koh, da Escola de Direito de Yale. “Este é o governo mais fechado, mais baseado no segredo que este país já teve”, completa.
Enquanto o Congresso se debate para restabelecer suas prerrogativas constitucionais, o Executivo, através do secretário Ashcroft – um fascistóide de opereta, caracterizado como “fundamentalista cristão” pela revista conservadora britânica The Economist impõe passo de ganso nas relações cotidianas da sociedade.
Já se fala no estabelecimento de grupos de vigilantes – caminhoneiros, aposentados, carteiros, entregadores, enfim, gente que lida diretamente com as comunidades – para xeretar a vida alheia e denunciar aquilo que lhes parecer “suspeito”. Na prática, a idéia criaria grupos de espiões entre cidadãos, materializando um dos sonhos autoritários mais antigos e comumente praticado em Cuba e nos antigos regimes comunistas da União Soviética e leste europeu.
Parte desta rede de arapongas civis já está montada, tendo como combustível a paranóia criada pelos inúmeros “estados de alerta” proclamados pelo governo e os órgãos de segurança. A cada mês, uma nova lista de possíveis alvos de ataques iminentes é lançada
ao público com uma urgência que, logo em seguida, se prova altamente exagerada.
Os alertas não dizem “quem”, “quando” ou “onde”, de modo que não geram precauções úteis mas disseminam o medo. O resultado é que os nervos da população, principalmente em Nova York, estão em frangalhos.
E esta condição gera iniciativas particulares no campo da segurança. Os exemplos se contam aos milhares: cinemas que não permitem adolescentes carregar mochilinhas para dentro das salas de projeção, câmaras de vídeo instaladas às pressas em botecos de bairro. Há, também, iniciativas abertamente ilegais, como os bandos armados que fazem a ronda no bairro do Brooklyn, o espancamento de pessoas que “parecem” árabes, as barreiras montadas em ruas da periferia...
Ao que parece, os terroristas do 11 de setembro estão vencendo a batalha mais importante, ao provocar a erosão acelerada das liberdades públicas que estão no cerne da democracia americana. Mas a Constituição americana é um documento forte. “Que ninguém duvide que esta situação será revertida”, garante o professor Koh. “Está cada vez mais difícil para este governo convencer o Congresso de que as medidas autoritárias que propõe são mesmo necessárias. Vai chegar um momento em que os legisladores erguerão um dique de contenção contra essa inundação autoritária”, acredita.
Acostumados ao império do direito individual e à cidadania plena, os americanos já dão mostras de que sua flexibilidade tem limites. “Prevejo uma chuva de ações contestatórias nos tribunais e a declaração da inconstitucionalidade dos abusos”, diz Koh. Ou seja: o espírito de Thomas Jefferson assombra a Casa Branca de Ashcroft e Bush.
Boletim Mundo Ano 10 n° 5
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