quinta-feira, 24 de março de 2011

A classe operária em extinção

George Bush enfrenta um duro teste em sua reivindicação de ser um presidente defensor do livre comércio. Antes de 6 de março, ele deve decidir se impõe tarifas sobre as importações de aço a fim de proteger a combalida indústria doméstica. (...) Isso seria desastroso. Iria estraçalhar as relações com parceiros comerciais no mundo inteiro, do Cazaquistão à Coréia do Sul. As relações comerciais transatlânticas que são cruciais para o lançamento da rodada comercial de Doha sofreriam estrago considerável. (...) Se tudo isso não é suficiente, tarifas sobre o aço também prejudicariam a economia americana (...). Os Estados Unidos consomem mais aço do que produzem: os consumidores sofreriam muito mais com as tarifas do que os produtores seriam beneficiados.
Essa foi a posição da revista The Economist, em editorial publicado na sua edição de 2 de março, diante do dilema enfrentado pela administração Bush. A Economist é o órgão mais influente do pensamento liberal e, coerentemente, uma defensora radical da globalização econômica. Seus argumentos, como se sabe, não foram ouvidos por Bush. Na edição seguinte, um editorial trazia o título: “George Bush, protecionista”.
Por que Bush deflagrou a “guerra do aço”, colocando em risco importantes relações comerciais americanas e a própria rodada de negociações da OMC anunciada  em Doha? Se os Estados Unidos são grandes importadores de produtos siderúrgicos, que servem como insumo para diversas indústrias nacionais, por que reduzir a eficiência de todas essas indústrias? Qual é o sentido de impor custos mais altos às indústrias nacionais (inclusive a indústrias exportadoras) e aos consumidores americanos em geral? Afinal, quais interesses estão por trás do pacote protecionista de cotas e tarifas decidido pela Casa Branca?
Uma parte da resposta encontra-se na já conhecida tendência de Bush de atender aos “interesses especiais” de grupos empresariais
influentes. A falência fraudulenta da Enron, uma corporação gigantesca do setor energético, trouxe à tona as relações escandalosas da administração, conduzidas pelo vice-presidente Dick Cheney, com as empresas petrolíferas e termoelétricas – que estão sendo beneficiadas por um generoso pacote de subsídios. Depois dos atentados de 11 de setembro, as companhias de aviação foram salvas da bancarrota por uma torrente de recursos públicos – e, mesmo assim, fizeram cortes radicais de empregos.
Mas as empresas siderúrgicas não têm, atualmente, grande influência política. Os seus “interesses especiais” não compensam, mesmo aos olhos de Bush, os danos políticos e econômicos produzidos pelo pacote protecionista. A parte mais importante da resposta encontra-se em outro lugar: o pacote de Bush destina-se a salvar uns poucos empregos, de alto valor simbólico, na indústria siderúrgica.
A globalização e a revolução tecno científica têm impacto profundo sobre as estruturas econômicas e de emprego, em escala mundial. De um ponto de vista relativo, os empregos industriais estão sendo transferidos dos países desenvolvidos para um grupo de países subdesenvolvidos da Ásia .
Nos Estados Unidos, a participação da indústria na oferta de empregos teve redução de cerca de um terço em menos de três décadas. A Alemanha e a Itália, como os demais países da Europa ocidental, conheceram reduções também significativas. Até mesmo o Japão – o “país-fábrica”  experimentou alguma retração no emprego industrial. A imensa maioria dos empregos eliminados pela automação e pela relocalização industrial são de operários de indústrias tradicionais.
As indústrias que dependem da utilização intensiva de mão-de-obra estão em declínio acelerado nos países desenvolvidos. Também declinam na Rússia e nos países da CEI. Na antiga União Soviética, a indústria pesada tradicional representou o eixo do crescimento econômico socialista e chegou a empregar uma parcela imensa da população ativa. Mas as reformas econômicas liberalizantes tiveram impacto devastador sobre fábricas assentadas em tecnologias antiquadas.
O emprego industrial apresenta estagnação relativa em países cuja arrancada industrial começou há mais de meio século, como o México e o Brasil. Mas, tendo em conta o rápido crescimento da população ativa, esses países experimentam aumento do emprego no Setor Secundário, em termos absolutos. Nada, contudo, que se pareça com o que acontece na Ásia oriental e meridional, onde as indústrias de trabalho intensivo beneficiam-se de baixos custos da mão-de-obra. Na Indonésia, os empregos industriais eram cerca de 4,5 milhões há trinta anos. Hoje, são 16,5 milhões. Na China, passaram de 27 milhões para 150 milhões!
Os Estados Unidos não enfrentam uma crise de desemprego. Estruturalmente, os empregos industriais eliminados são substituídos por empregos no comércio e nos serviços. Conjunturalmente, mesmo com a recessão, as taxas de desemprego giram em torno de 6%. Mas a siderurgia é um caso especial, em função do seu valor simbólico.
A indústria siderúrgica está associada à noção de poder. O aço serve para fazer blindados e grandes estruturas de engenharia. As torres do World Trade Center estavam sustentadas por colunas de aço. Os operários da siderurgia simbolizam, desde o século XIX, a classe trabalhadora. O seu desaparecimento tem repercussões imaginárias e emocionais profundas.
Na campanha eleitoral, Bush cercou-se de operários siderúrgicos da Pensilvânia, num cenário de minas de carvão e altos-fornos, e prometeu defender os seus empregos. Com esse gesto, procurava roubar os votos dos trabalhadores industriais sindicalizados, que tradicionalmente fluem para o Partido Democrata. Mas, sobretudo, o gesto de Bush tentava associar a sua imagem à da “nação profunda”, que não vive em Nova York ou Boston.
Os operários filmados e fotografados ao lado do então candidato a presidente são um resquício da outrora numerosa categoria dos trabalhadores siderúrgicos . O pacote protecionista não evitará que, em alguns anos, quase todos também desapareçam, tragados pela globalização econômica. No máximo, retardará só um pouco o desenlace inevitável. Mas serve para o populismo republicano que busca a união nacional em torno da “guerra contra o terror”.
Boletim Mundo Ano 10 n° 3

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