terça-feira, 29 de março de 2011

ÁFRICA DO SUL ACALENTA O SONHO DO “RENASCIMENTO AFRICANO”

Paradoxalmente, foi no exílio americano que, reunidos, os negros de diferentes etnias construíram uma imagem da África, imagem decerto fictícia, mas muito atuante, ao passo que na própria África as antigas divisões dos reinos, o parcelamento dos territórios, e depois as fronteiras traçadas pelos colonizadores jamais deram origem a um conceito africano.
(Marc Ferro, História das colonizações, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 297)
A OAU está morta. Glória eterna à OAU, que é nosso passado! Nasceu a UA. Vivas à UA, que é nosso futuro!
Claro que ninguém disse isso desse jeito, mas não foi outro o sentido das declarações, grandiosas e esperançosas, adotadas na sessão inaugural da Assembléia da União Africana (UA), que se reuniu em Durban (África do Sul), em julho. A nova UA quer ser tudo o que a velha Organização da Unidade Africana (OUA) não conseguiu  ou não quis – ser. Mas os Estados que fundaram a UA sabem que são herdeiros da OUA.
O passado pesa sobre o futuro.
A OUA, fundada em 1963 como  instituição de cooperação e segurança continental, trazia no seu nome a idéia da unidade de toda a África, isto é, o sonho pan-africano.
Mas só no nome. Na prática, a  organização serviu como instrumento de perpetuação da fragmentação geopolítica estabelecida pelo imperialismo europeu .
Na conferência que realizou no Cairo, em 1964, a OUA adotou o princípio da intangibilidade das fronteiras existentes – que eram as fronteiras desenhadas pelas potências européias no final do século XIX. Por que os líderes de uma África que se libertava do poder colonial juraram  quando ainda se ouviam os ecos das festas de independência  conservar aquelas linhas de limites que não refletiam em nada a história, a experiência, as culturas e etnias africanas?
Há uma resposta cínica, mas em parte verdadeira, para essa pergunta. Os líderes africanos representavam elites étnicas cujo poder estava assentado justamente nos Estados existentes, que portanto deviam ser conservados.
A pergunta admite, porém, outra resposta, que é também parcialmente verdadeira.
A África não tinha “fronteiras africanas”, disponíveis para substituir aquelas criadas pelas potências européias. O continente africano exibe uma multiplicidade impressionante de culturas e etnias . Mas não tinha constituído Estados nacionais até o avanço irresistível dos poderes coloniais estrangeiros. Por isso, contestar as fronteiras herdadas significava, provavelmente, acender o pavio de mil guerras étnicas.
O interesse dos Estados na sua própria preservação, expresso como princípio básico da OUA, surtiu efeito. Quarenta anos depois da onda das independências, as fronteiras africanas praticamente não experimentaram mudanças. Mas o preço cobrado pela estabilidade do desenho das fronteiras foi a instabilidade interna: por quase toda a África Subsaariana, pipocaram conflitos étnicos. A violência política dos regimes ditatoriais refletiu o controle dos aparelhos de Estado por elites étnicas corruptas, preocupadas apenas em assegurar o seu poder e as suas fontes de renda.
Guerra do Congo
Durante a Guerra Fria, os Estados africanos alinharam-se com uma ou outra das superpotências mundiais. A recompensa consistiu no financiamento externo dos aparelhos administrativos e militares, que assegurou o poder dos regimes ditatoriais e o esmagamento da contestação interna O encerramento da Guerra Fria mudou todo o cenário. A África Subsaariana tornou-se, de modo geral, irrelevante para as grandes potências. As fontes externas de financiamento secaram – e os governos africanos perderam a capacidade de silenciar a contestação étnica pela violência.
Na última década, alastraram-se as guerras civis africanas e, pela primeira vez, o princípio da intangibilidade das fronteiras ficou seriamente ameaçado.
O foco do terremoto geopolítico foi o antigo Zaire, na África equatorial. O Zaire permaneceu, entre 1965 e 1997, sob a ditadura de Mobutu Sese Seko, instalado no poder com ajuda da CIA. Foi, finalmente, derrubado pelas forças rebeldes de Laurent Kabila, armadas e financiadas por Ruanda e Uganda. Mas Kabila revelou-se um déspota semelhante a seu antecessor e o país, rebatizado como a República Democrática do Congo (RDC), retrocedeu para uma guerra de saques e pilhagens. Ruanda e Uganda enviaram tropas para derrubar Kabila, que conseguiu o apoio de forças de Angola, do Zimbábue e da Namíbia. Depois, Ruanda e Uganda chegaram a combater entre si. No centro do conflito, encontrava-se a disputa pelas vastas jazidas congolesas de diamantes, cobre e cobalto.
A guerra lançou as sementes da desintegração da RDC e acendeu o pavio de uma conflagração geral na África austral.
Todo o leste do Congo ficou sob o controle dos rebeldes. O total de mortos, segundo a maioria das estimativas, atingiu a cifra apavorante de 3 milhões. “O Congo é tão verde que sequer se enxergam as covas”, disse um voluntário a serviço da ONU. Mas a mídia mundial praticamente ignorou a catástrofe humana da África equatorial.
O assassinato de Kabila, em janeiro de 2001, e o esgotamento das forças envolvidas abriu caminho para o encerramento do conflito. Joseph Kabila, filho do déspota assassinado, assumiu o poder na RDC e assinou, em abril deste ano, um acordo de paz com os rebeldes. Em julho, sob o patrocínio da África do Sul, a RDC e Ruanda firmaram um tratado de paz. A União Africana é um fruto direto do fim da guerra congolesa. A sua criação reflete a emergência da África do Sul, que se engaja na liderança política continental. Não por acaso, Thabo Mbeki, chefe de Estado sul-africano, foi escolhido presidente da UA.
Paz, desenvolvimento, democracia e unidade?
A principal iniciativa da UA consistiu no estabelecimento de um Conselho de Paz e Segurança, que será composto por cinco membros eleitos por três anos e outros dez com mandatos de dois anos. O Conselho tem poderes para intervir em guerras étnicas, prevenindo episódios de genocídio.
Ao mesmo tempo, a Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (Nepad)  um programa de financiamento econômico apoiado pelas potências mundiais e liderado pela África do Sul foi integrada às estruturas da UA. Desse modo, pode-se prever que os Estados coordenadores da Nepad (África do Sul, Nigéria, Egito e Argélia) ocuparão quatro dos cinco postos mais importantes no Conselho de Paz e Segurança.
A Assembléia de fundação da UA desdobrou-se em elogios à democracia, que é praticada apenas num punhado de Estados africanos. Nos documentos oficiais, eleições aparecem como condição para a participação na UA. Palavras vazias? Em parte.
Mas a experiência democrática da África do Sul tem o seu peso e começa a exercer influência através da África Subsaariana.
África Subsaariana e África do Norte formam universos distintos. Para a segunda, não é a África, mas o mundo árabe, a referência geopolítica e cultural decisiva. O fracasso da OUA deveu-se, em parte, à ausência de uma liderança política de peso na África Subsaariana. A UA tem essa liderança, que é a África do Sul liberta do apartheid.
A fundação da UA foi marcada pela contestação da Líbia de Muammar Kaddafi à liderança sul-africana. Kaddafi, enrolado na bandeira do pan-africanismo, pediu nada menos que a criação de um Exército africano.
A retórica do pan-africanismo, sob formas menos caricaturais, perpassa os documentos da UA. Mbeki gosta de falar no “renascimento africano”. Foi aprovada a idéia de instituição, no futuro, de um Parlamento Africano com poderes reais. Diante de um Mbeki quase irado, Kaddafi lançou a candidatura de Trípoli, a capital da Líbia, para sede do Parlamento. Trágica ironia: a Líbia é uma ditadura de partido único e não possui um parlamento nacional.
Boletim Mundo Ano 10 n° 5

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