terça-feira, 29 de março de 2011

UMA HIPERPOTÊNCIA FORA DA LEI?

Newton Carlos
Sob a administração Bush, os Estados Unidos estão se notabilizando pela recusa a todas as formas de cooperação multilateral. Washington abandona um a um os tratados que formam o esteio do direito internacional.
Em entrevista à revista política Prospect, o premiê britânico Tony Blair pediu que a Europa não se desgarre da sua aliança estratégica com os Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, o presidente da França, Jacques Chirac, e o chefe de governo da Alemanha, Gerhard Schroeder declaravam que um ataque ao Iraque, obsessão de Bush, só com aval do Conselho de Segurança da ONU. A legalidade internacional manda que seja assim.
O Iraque é um divisor, mas não o único. Desde que Bush assumiu a Casa Branca os países europeus, à exceção da Grã-Bretanha, entraram em descompasso com os Estados Unidos em questões de fundo da ordem mundial. No círculo íntimo do presidente americano, onde pontificam falcões como Donald Rumsfeld, chefe do Pentágono, as lideranças da Europa são tratadas como elite covarde, afeita a formalismos dispensáveis em tempos de guerra.
Acontece que os europeus  a maioria, pelo menos não se considera em guerra. O despeito da turma de Bush mostra o tamanho das divergências.
Mesmo a Grã-Bretanha não teve outro jeito senão contrapor-se à oposição isolada de Bush à criação do Tribunal Penal Internacional (TPI). Concordou com a avaliação das democracias ocidentais, segundo a qual o gesto dos Estados Unidos colocou em xeque toda a engrenagem de segurança da ordem mundial, sobretudo as operações de paz da ONU.
Com tropas estacionadas ao redor do mundo, a CIA onipresente com seus métodos “especiais” e abertura de novos porões - os da “guerra contra o terrorismo” -, os Estados Unidos não querem uma instância jurídica internacional que trate de crimes de guerra, contra a humanidade e genocídios. A Casa Branca de Bush tornou-se trituradora de acordos, pactos e convenções.
Os Estados Unidos abandonaram o Tratado ABM, de 1972, que proíbia o desenvolvimento e fabricação de mísseis  anti-mísseis e, com isso, destruíram um pilar do edifício do equilíbrio nuclear.
Em março de 2001, Bush declarou “morto” o Protocolo de Kyoto. O presidente americano não aceita as regras de proteção do meio ambiente acertadas em 1997 pela comunidade internacional. O que está em jogo, nesse caso, é a contenção das emissões de gases de estufa e o aquecimento global. Bush lançou o seu próprio protocolo, em vigor nos Estados Unidos, sem consultar a ninguém.
Já se fala num “Estado fora da lei”, tal o volume dos niets (como se expressavam as recusas soviéticas na Guerra Fria). Outra declaração de “morte” atingiu a convenção sobre armas biológicas e químicas, de 1972. Esse tratado foi ratificado por 144 países, inclusive os Estados Unidos. Em julho de 2001, porém, o delegado americano abandonou uma reunião em Londres para reforçar os controles com inspeções “in loco”. Quatro meses mais tarde, em Genebra, o subsecretário de Estado John Bolton compareceu empunhando o atestado de óbito.
Os Estados Unidos não abrem suas instalações para inspeções internacionais, mas acusam um “eixo do mal” de maquinações com armas de destruição maciça.
Os Estados Unidos – o único país a se opor a um acordo na ONU destinado a combater o tráfico ilegal de armas leves – parecem dispostos a abandonar de vez o tratado de banimento das minas terrestres, cujos rescaldos produzem mortos e estropiados ao largo do mundo. O documento foi negociado em 1997, por 122 países. Num primeiro lance, Clinton o rejeitou, em companhia da Rússia, China, Índia, Paquistão, Irã, Iraque, Vietnã, Egito e Turquia. Depois, assumiu o compromisso de que Washington assinaria o tratado em 2006. Mas Bush renegou-o, “em definitivo”, em agosto de 2001.
Só os Estados Unidos bateram de frente com a resolução da Comissão de Direitos Humanos da ONU determinando acesso, “a custos reduzidos”, da população dos países pobres a medicamentos anti-Aids. Nesse caso, cavaram trincheiras juntos com as transnacionais farmacêuticas.
Em maio de 2001 os Estados Unidos se recusaram a discutir com países europeus espionagem econômica e vigilância eletrônica. Na pauta, estava o sistema americano Echelon, uma rede planetária de “mil olhos” fixados em telefones, aparelhos de fax e no correio eletrônico.
A existência da Echelon foi levantada e denunciada pelo Parlamento Europeu.
Em setembro de 2001, os Estados Unidos deram as costas à conferência da ONU sobre racismo, reunida na África do Sul. Só tiveram a companhia de Israel, pivô do dissenso com outros 162 países, inclusive a totalidade dos europeus. As alegações americanas foram de “ações unilaterais contra Israel”.
Em julho de 2001, os americanos se isolaram dentro do G-7, o grupo dos países mais ricos, com posição contrária a um programa internacional de energia mais limpa. Também não deram importância à décima resolução da ONU mandando levantar o embargo contra Cuba. E não assinam o tratado de banimento total dos testes nucleares.
Os Estados Unidos assinaram, mas não ratificaram, a convenção acabando com todas as formas de discriminação contra a mulher.
Nessa matéria, estão juntos com o Afeganistão e São Tomé e Príncipe. Também não ratificaram a convenção sobre direitos das crianças.
O britânico Will Hutton é impiedoso com a “América de Bush”. O seu livro World we’re in trata de coisas sobre as quais pouco se fala, caracterizando os Estados Unidos como a “sociedade mais repleta de desigualdades do universo de países industrializados”.
Hutton cita a obsessão por lucros a curto prazo, para satisfazer acionistas. Com isso a indústria americana “fica privada de recursos capazes de renová-la e de permitir planejamento a longo prazo”. Pior ainda, diz Hutton, “indefesos por causa do colapso do liberalismo, os Estados Unidos caem nas mãos de conservadores que tratam de esvaziá-los do que eles têm de melhor”. Com o advento de Bush torna-se um país “hostil a todas as formas de cooperação internacional”.
Pelo menos neste ponto muita gente concorda com Hutton. O correspondente do jornal britânico Guardian em Washington, Julian Borger, escreveu sobre a relutância da Casa Branca em subordinar interesses nacionais dos Estados Unidos, por menores que sejam, a esforços de interesse global. Na medida em que os Estados Unidos definem seus interesses nacionais de modo cada vez mais estreito, o mundo se torna mais perigoso.
Boletim Mundo Ano 10 n° 5

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