Newton Carlos
Oposição de Washington ao TPI expressa o conflito entre o direito internacional e o sistema de potências corporificado no Conselho de Segurança da ONU.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi instalado oficialmente em julho. A sua sede fica em Haia (Holanda). A corte, destinada a julgar crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade, será comandada por 18 juízes, indicados pelos países que ratificaram o tratado, entre os quais está o Brasil. Mas o TPI nasce sem a única superpotência mundial.
Os Estados Unidos ameaçaram retirar suas tropas da Bósnia caso elas ficassem sob a jurisdição do TPI.
Um acordo alcançado a duras penas no Conselho de Segurança assegurou imunidade para o pessoal americano na Bósnia, durante um ano, assestando o primeiro golpe sobre a nova corte.
O TPI interfere no sistema de potências embutido na ONU e hoje dominado pelos americanos. Os Estados Unidos têm um PIB de 11 trilhões de dólares e gastos militares que representam o dobro da soma dos mesmos gastos de todos os países europeus. A criação do TPI estabeleceu um confronto entre um Estado nacional todo-poderoso e a instância jurídica supranacional negociada durante quatro anos. Os Estados Unidos são a única democracia ocidental a rejeitá-lo.
Um dos bons papéis de Burt Lancaster foi o de um juiz da Alemanha hitlerista no tribunal de Nuremberg, onde se sentaram os criminosos de guerra nazistas . Ouvia calado as acusações contra ele. Dispensava defensores. Na prisão, se isolava num canto. Evitava conviver com a “escória nazista” (Goering etc.). Jurista de renome na Alemanha anterior a Hitler, adorado pelos seus alunos, cultivava com a dignidade possível a convicção de que apenas cumprira deveres.
Como cabia a um juiz, aplicara as leis do Estado.
Mas representava um Estado destruído, incapaz de reagir a um sistema de potências decidido a jogar em cima dos vencidos todo o peso da justiça. Até despertou piedade no promotor, vivido por Spencer Tracy, mas não escapou da punição “exemplar”. Já o comandante do bombardeio aliado que no final da guerra devastou a cidade alemã de Dresden (200 mil mortos), um alvo irrelevante do ponto de vista militar, não foi a julgamento. Ficou conhecido como “Harry the bomber” e ganhou estátua na Inglaterra.
Os sistemas de potências, heranças dos pactos firmados no encerramento das Guerras Napoleônicas, desembocaram nas duas guerras mundiais do século XX.
A ONU devia enterrá-los. Não conseguiu. O novo sistema de potências da Guerra Fria garantiu a concentração de poderes no Conselho de Segurança, expressa através dos assentos permanentes e do direito de veto conferido às cinco potências vitoriosas.
Instalou-se o que o historiador Geoffrey Barraclough chamou de falso internacionalismo da Guerra Fria. A ONU não se envolveu com o Vietnã porque lá estavam os americanos.
Tampouco com as guerras da Argélia e das Malvinas, assuntos da França e Grã-Bretanha, ou com o Afeganistão, invadido pelos soviéticos. O sistema de potências desequilibrou-se com o fim da União Soviética e um imenso poder foi acumulado pelos Estados Unidos, ao ponto de elevá-los à condição de único super poder existente – a “nova Roma”.
Mas seus mecanismos permanecem intactos.
Os genocídios em Ruanda (na África oriental) e na Bósnia (antiga Iugoslávia), entregues a tribunais provisórios, fortaleceram a idéia de criação de instâncias jurídicas supranacionais que julgassem crimes de guerra e contra a humanidade. Os tratados foram esboçados em Roma, desde 1998. Árduas negociações resultaram na criação do TPI, diante do qual todos os Estados- membros têm deveres e direitos iguais. A “nova Roma” decidiu ficar de fora.
Os Estados Unidos vão ignorar as decisões do TPI. Não será réu do tribunal nenhum de seus 200 mil soldados espalhados pelo mundo, em bases militares ou exercendo missões de guerra ou paz. Agora, a contradição não é entre um Estado nacional derrotado e uma justiça imposta pelos vencedores, como em Nuremberg.
É entre um tribunal supracional e a nação mais poderosa, cujas atitudes mostram a pretensão de exercer sozinha os poderes antes atribuídos ao conjunto dos vencedores da Segunda Guerra Mundial.
O unilateralismo, ou “excepcionalismo”, de Bush coloca os Estados Unidos em oposição à Grã- Bretanha e França, os tradicionais aliados europeus, e na companhia da Rússia, China, Coréia do Norte e Iraque, que também não reconhecem o TPI. A “solução” para o impasse oferecida pelos Estados Unidos consiste em transferir para o Conselho de Segurança da ONU as decisões processuais mais importantes do novo tribunal, de modo a assegurar o direito de veto contra tentativas de processar americanos. Seria a volta ao velho sistema de potências.
A recusa americana tem selo nacional e não só da Casa Branca. A nova corte não passaria pelo Senado dos Estados Unidos. Foi o que garantiu o velho conservador Jesse Helms, presidente da Comissão de Relações Exteriores.
Helms e outro senador, John Wagner, propuseram um “Servicemen’s Protection Act”, que proíbe qualquer tipo de cooperação com a nova corte e autoriza o presidente a usar “todos os meios necessários” para libertar americanos presos por determinação do TPI. Para a direita americana é uma questão de soberania nacional.
Essa corrente interpreta a criação do TPI como uma vasta conspiração de esquerda, com o objetivo de instalar sorrateiramente um “governo mundial”.
A posição de Washington tem raízes profundas.
A própria cultura política dos Estados Unidos não confia em juízes e procedimentos legais estrangeiros.
Aos olhos dos americanos é inadmissível, por exemplo, que um juiz árabe julgue um soldado dos Estados Unidos. Além disso, os militares do Pentágono se enxergam como legiões armadas da “nova Roma”, o que lhes daria o direito de atuar unilateralmente em defesa da “ordem internacional”.
Boletim Mundo Ano 10 n° 4
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