quarta-feira, 30 de março de 2011

SÃO PAULO, O CIRCUITO DE UM SÍMBOLO

Nicolau Sevcenko
Prefeitura retorna ao ponto de origem, no Viaduto do Chá, depois de circular pelo Ibirapuera e Parque Dom Pedro. Há uma narrativa simbólica escondida atrás do giro da sede do poder municipal.
Numa cidade como São Paulo, que tradicionalmente foi a sede do governo da província ou do estado, e da Câmara dos Deputados, a Prefeitura nunca foi uma real necessidade. Aqueles dois órgãos se encarregavam de providenciar os reparos e obras indispensáveis para a vida de uma cidadezinha singela e pacata.
Porque, até que a capital começasse a receber o impacto da riqueza proveniente da cafeicultura, em meados do século XIX, ela permanecia sendo pouco mais do que o vilarejo criado ao redor do colégio dos jesuítas.
Como não tinha atividades econômicas próprias, São Paulo constituía um povoado mirrado e muito pobre. Durante longo tempo, a atividade predominante dos paulistas era o apresamento e venda dos indígenas como escravos. Foi assim que os paulistas se espalharam pelos sertões, fundando outras povoações por onde passavam. A capital era, portanto, um centro exportador e irradiador de gentes. Dentro da cidade propriamente dita, ficavam sobretudo as mulheres com seus filhos que, um dia, ao se tornarem adultos e ante a falta de alternativas, também haveriam de partir.
Como a atividade cafeeira era dominada por financiadores ingleses, e como eles é que planejaram a implantação da grande rede ferroviária indispensável para o escoamento da produção, fizeram questão de fazer convergir toda a malha de transporte para a cidade de São Paulo. A vantagem é que, assim, poderiam controlar os estoques, descendo as sacas do produto aos poucos para o porto exportador de Santos, de modo a manter os preços sempre em alta no mercado internacional.
Beneficiada por essa manobra, a capital viu se concentrar em seu meio, num curto espaço de tempo, uma enorme fortuna, numa época em que São Paulo era responsável pela produção de mais de 75% de todo o café negociado no mundo.
Assim, no rastro de uma manobra especulativa do mercado internacional, a cidade se tornou o maior pólo de prosperidade do país, atraindo gentes de todas as regiões e de todos os pontos do globo, registrando um enorme crescimento demográfico e um processo de metropolitização na passagem do século XIX para o XX. Desde então, e até à década de 60, ela seria, de fato, “a cidade que mais cresce no mundo”. O crescimento excepcional e as enormes demandas que ele impunha à autoridade administrativa levaram à criação da Prefeitura, através de um decreto de 1898.
À essa altura, a cidade já passava por um processo de intensa transformação. Nos seus inícios, a Prefeitura se instalou num dos prédios mais monumentais da cidade, o Palacete Prates, recentemente edificado, à direita do Vale do Anhangabaú, na esquina da rua Quintino Bocaiúva com a praça do Patriarca, exatamente em frente ao local onde hoje fica o prédio Matarazzo do Banespa.
A inauguração do Viaduto do Chá, na sua primeira versão em estrutura metálica, em 1892, estabelecera a ligação da área histórica da capital com a chamada “cidade nova”, em direção à Barão da Itapetininga e praça da República, valorizando enormemente os terrenos em toda a região. Foram então construídos novos prédios, em imponente estilo europeu. O mais notável de todos, o Palacete Prates, imitava o modelo da arquitetura com que eram construídas as Câmaras Municipais francesas. A sede da Prefeitura assinalava assim uma nefasta vocação de convívio íntimo com as artimanhas especulativas.
O predomínio dos interesses especulativos sobre as necessidades da população  o traço sem dúvida mais patético da história de São Paulo levaria a administração da cidade, sempre em conluio com os especuladores, a dotar o seu desenvolvimento de um caráter autofágico. A capital se destrói e se consome a sí mesma, ao ambiente natural e à qualidade de vida de seus habitantes, na medida em que se expande e se transforma, horizontal e verticalmente.
A fatal prioridade concedida aos veículos e ao transporte individual e privado completou o quadro da degradação, tornando a cidade hostil ao invés de acolhedora para os cidadãos.
Um dos primeiros efeitos perversos dessa combinação de práticas especulativas foi a decadência do hoje chamado “centro velho” da cidade. Com as sucessivas remodelações da região ao redor do Vale do Anhangabaú, a Prefeitura, depois de uma breve passagem pela rua Florêncio de Abreu, acabou migrando para o charmoso Parque Ibirapuera, na época da sua inauguração, no contexto da celebração do Quarto Centenário da cidade de São Paulo, em 1954.
O Parque do Ibirapuera consagraria o novo rumo da especulação imobiliária, em direção à zona sul da cidade. A Prefeitura se punha assim em sintonia com esse processo, acentuando o desequilíbrio e a segregação social da vida urbana. Quando, portanto, em 1992, contra forte resistência, a prefeita Luiza Erundina decidiu transferir a sede da administração municipal para o Palácio das Indústrias, no Parque D. Pedro II, sua iniciativa visava deter e reverter essa tendência discriminatória, retornando ao centro histórico da cidade.
O Palácio das Indústrias ademais tinha uma importância simbólica. Ele fora construído em 1920, para sediar a Primeira Exposição da Indústria Paulista. Todos os expositores, sem exceção, eram imigrantes estrangeiros. O palácio representava a ascensão  social de uma nova elite e um novo modelo econômico de base industrial, que desafiavam a velha oligarquia cafeeira encastelada no palacete do Conde Prates. Além disso, ele se voltava, em sua arquitetura eclética e mirabolante, para os bairros populares da zona leste Brás, Pari, Belém, Moóca  onde se concentrava a massa da população operária. O gesto da prefeita Erundina contemplava assim dois objetivos: repor a administração da cidade na perspectiva do seu centro histórico e se debruçar sobre as áreas abandonadas e a parcela mais carente da população.
Com a recente aquisição do prédio do Banespa e a decisão de transferir a Prefeitura para o edifício Matarazzo, Marta Suplicy reitera o impulso de Erundina e praticamente recoloca a municipalidade no seu local de origem. Trata-se, também, de um monumento simbólico. Ele foi construído em 1938-39, pelo brilhante artista italiano Marcelo Piacentini, um dos arquitetos oficiais do regime fascista, sob encomenda do empresário Francesco Matarazzo. De arquitetura moderna, com inspiração românico-medieval e concepção monumental, é uma das maiores construções em travertino romano do mundo. Erguido na embocadura do Viaduto do Chá, seu perfil luminoso de torre e fortaleza se impõe sobre todo contexto panorâmico do vale do Anhangabaú, o principal foco fisionômico da paisagem urbana paulista.
Suas conotações viris e autoritárias são mais do que evidentes. Que ele sugira um princípio de força e intervenção não significa necessariamente um problema. A cidade e os cidadãos realmente carecem de uma ação pública forte que confronte a ganância especulativa, os bastiões do privilégio e a onipotência do transporte privado. De volta às origens, a Prefeitura tem a chance de refazer a sua história.
Dessa vez pelo lado certo.
Boletim Mundo Ano 10 n° 6

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