Eles vieram buscar Rabih Haddad durante a tarde, quando sua família estava se preparando para celebrar o final do Ramadã. Três homens do Serviço de Imigração e Naturalização o levaram de seu apartamento, em Ann Arbor, Michigan, onde ele morava com sua mulher e quatro filhos (...). Isso aconteceu em 14 de dezembro. Desde então, Haddad, um líder religioso conhecido e respeitado, fundador do mais importante grupo filantrópico islâmico dos Estados Unidos, o Global Relief Foundation, foi mantido preso em solitária, primeiro em Ann Arbor e depois em uma prisão federal, em Chicago. É mantido sozinho na sua cela 23 horas por dia. Toda vez que deixa a cela, ou para praticar algum exercício em uma jaula de segurança máxima ou para tomar um de seus três banhos semanais, permanece algemado.”
Assim começa um relato feito pelo correspondente Andrew Gumbel para o jornal britânico The Independent, publicado em 26 de fevereiro. Gumbel prossegue contando uma lista imensa de horrores, humilhações e práticas violentas cometidas contra Haddad, um cidadão libanês educado nos Estados Unidos, contra quem pasmem! – não existe uma única acusação formal. Ele é “suspeito” de manter “ligações” com a organização Al-Qaeda de Osama Bin Laden, sem que fosse apresentada qualquer prova, mesmo que circunstancial.
Mais de 2 mil pessoas passaram por experiência semelhante, desde o 11 de setembro, segundo diversas organizações de defesa dos direitos humanos nos Estados Unidos. Ninguém sabe, com exatidão, quantos ainda estão na cadeia. Todos estão acostumados a ler notícias desse tipo, quando se referem a ditaduras militares em países do “Terceiro Mundo”. Como explicar, então, que tudo isso esteja acontecendo nos Estados Unidos?
Existe um amparo juridicamente legal para a ação policial. Ela está amparada em decreto do presidente George W. Bush, o Patriot Act, destinado a ampliar os poderes do FBI (polícia federal) e dos serviços secretos na “guerra ao terror”. John Ashcroft, o ultra-conservador secretário da justiça do governo Bush, está levando os limites do decreto ao ponto de máxima tensão. Poucos ofereceram resistência ao decreto, promulgado sob o impacto dos atentados. Porém, à medida que o tempo passa, até mesmo setores conservadores do establishment americano começam a levantar dúvidas e resistências. Temem que Bush, ao concentrar tantos poderes no Executivo, esteja abalando o sistema de equilíbrio institucional e restringindo a liberdade de expressão – isto é, os pilares da República americana.
Coloca-se, portanto, com extrema agudeza, o eterno dilema que percorre toda a história dos Estados Unidos. De um lado, as instituições democráticas da República, consagradas em 1776 por Benjamin Franklyn, George Washington, Thomas Jefferson e os demais “pais fundadores” da nova nação. De outro lado, uma irresistível tendência ao Império isto é, ao expansionismo e à dominação – ancorada na ideologia do Destino Manifesto.
Jefferson e outros “fundadores” intuíram o dilema. Jefferson dizia temer pelo futuro dos Estados Unidos, “cada vez que penso na justiça de Deus”. Todos eles estudavam, com obsessão, a história do Império Romano: temiam uma decadência semelhante, propiciada pela corrupção dos costumes, pelo autoritarismo dos dirigentes, pelo excesso de poder. Abraham Lincoln, logo após a Guerra da Secessão (1861–65), alertou contra o “crescente poder das corporações”, cuja vocação era tomar posse da direção do Estado.
No célebre A democracia na América, escrito na década de 1830, o francês Alexis de Tocqueville compara o poder do presidente dos Estados Unidos com o do rei da França. Tocqueville conclui que as restrições ao poder presidencial na República americana decorrem muito mais das circunstâncias históricas que do caráter das instituições: “É principalmente em suas relações com os estrangeiros que o poder executivo de uma nação tem a oportunidade de mostrar habilidade e força. Se a vida da União estivesse constantemente ameaçada, (...) veríamos o poder executivo crescer na opinião pública, pelo que se esperaria dele e pelo que ele executaria.”
Profeticamente, o arguto observador da nova nação apontava a guerra como fonte potencial de um desequilíbrio de poderes, que favoreceria o executivo.
As guerras, de fato, ampliaram enormemente a força do poder executivo. A Guerra Fria, mais até que as “guerras quentes”. O republicano Richard Nixon, eleito em 1968, autorizou, sem consultar os parlamentares, o início dos bombardeios no Camboja, ampliando a Guerra do Vietnã. No seu governo, as atividades secretas e ilegais da CIA expandiram-se como nunca. O Império tornou-se uma ameaça direta à República.
Mas, no fim das contas, a República derrotou o Império. Grandiosas manifestações públicas contra a guerra no Vietnã garantiram o vigor dos direitos civis e da democracia. Na seqüência, as investigações da imprensa sobre o Caso Watergate deflagraram o processo de impeachment de Nixon, forçando-o a renunciar.
Agora, há muitas dúvidas no horizonte. A “guerra ao terror” proporciona uma nova oportunidade para o fortalecimento do poder executivo. Bush, na sua ofensiva contra as instituições democráticas da República, conta com o apoio bovino de uma mídia hipnotizada pelo “patriotismo” chauvinista. O confronto ainda não está decidido, mas se o Império ganhar, acontecerá uma catástrofe global.
Boletim Mundo Ano 10 n° 2
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