terça-feira, 29 de março de 2011

BIOLOGIA E IDEOLOGIA

José Arnaldo Favaretto
Você já deve ter ouvido falar desses dois autores. Qual deles está com a razão? Afinal, somos livres ou não passamos de escravos dos genes?
A pergunta apresenta os dois extremos de uma questão que, travestida de polêmica científica, mais parece um cabo de guerra ideológico: na “ponta esquerda”, o paleontólogo americano Stephen Jay Gould , Richard C. Lewontin e outros do time dos “darwinistas pluralistas”; na “ponta direita”, os darwinistas fundamentalistas, como os biólogos britânicos Edward O. Wilson (Biodiversidade), Willian D. Hamilton (chamado pejorativamente de Darwin II), Richard Dawkins (O relojoeiro cego) e seus seguidores, tidos como “mais darwinistas do que o próprio Darwin”.
O estopim foi aceso quando Wilson, no último capítulo do livro Sociobiologia (1975), escreveu que a espécie humana tem seus comportamentos regidos pelos mesmos mecanismos genéticos e evolutivos e pelas mesmas pressões de seleção natural  verificadas nas demais espécies animais. A questão central é: até que ponto o nosso genoma – o patrimônio genético que carregamos em todas as células – é determinante do nosso modo de ser?
Segundo os fundamentalistas, os mecanismos evolutivos de adaptação moldaram, ao longo do processo de formação da espécie humana, os traços marcantes de nosso comportamento.
De acordo com Wilson, muitos de nossos comportamentos – como o altruísmo, a violência e a honestidade – derivam de fatores genéticos que, evolutivamente, passaram pelo crivo da seleção natural.
Cita-se como exemplo uma tradição dos esquimós: em épocas de escassez de alimentos, quando os grupos familiares são obrigados a migrar, os idosos são deixados para trás, para não atrasar a marcha do grupo. Tratados como heróis, são reverenciados em comemorações de despedida até certo ponto festivas.
Conforme os fundamentalistas, esse comportamento é análogo a outros atos de altruísmo encontrados em animais, como o cantar de alerta de uma ave ao perceber a aproximação de um predador.
Num caso e no outro, o membro altruísta coloca em risco a própria sobrevivência, em benefício do pool gênico da população. Em defesa dos genes transferidos para as gerações seguintes – e não em defesa de um indivíduo – é menor o risco de se expor à agressão do que deixar os descendentes ameaçados. Este é o paradigma do “gene egoísta”, de Richard Dawkins: “Um ser vivo adaptado é o melhor ‘equipamento biológico’ que o DNA coloca ao redor de si para exercer seu papel replicante”. Enfim, não seríamos muito mais que “replicadores de DNA”.
Já os pluralistas, como Gould, afirmam serem os traços de nossa personalidade frutos da atuação do ambiente social, familiar e cultural. Lembram que os seres humanos não sofreram alterações genéticas de grande monta desde o seu alvorecer como espécie (há cerca de 100 mil anos), embora o ambiente cultural tenha se alterado profundamente. Do ser humano caçador- coletor ao ser humano urbano e informatizado, passamos por profundas modificações em nossa estrutura social, decorrentes das modificações no ambiente cultural, sem que o genoma tenha se alterado. Portanto, os fatores ambientais teriam sido determinantes na modelagem da nossa arquitetura psíquica.
Na defesa da visão pluralista, encontram-se argumentos mesmo entre os evolucionistas mais empedernidos, como Theodosius Dobzhansky: “Na evolução humana, houve um momento em que os genes cederam a supremacia para um agente novo, não-biológico e supra-orgânico: a cultura”.
O embate há muito deixou de ser meramente acadêmico, chegou às páginas de grandes jornais (principalmente, graças à disputa entre Dawkins e Gould, que figuram entre os mais brilhantes escritores de divulgação científica). Em um dos momentos mais rumorosos, durante um debate promovido pela American Association for Advancement of Science, em 1978, um manifestante atirou um copo de água em Edward O. Wilson, enquanto outros, aos berros, acusavam o britânico de racista, sexista e defensor de genocídios.
O pano de fundo da discussão é o maniqueísmo: o “pensamento de esquerda” alinhando-se com Gould; o “de direita”, com Wilson. A direita acusa Gould de ter abandonado os pressupostos da Biologia e de se converter em arauto do marxismo; a esquerda, por sua vez, vê nos textos dos defensores da sócio biologia as bases de sustentação do que mais combatem na velha direita: a xenofobia, o sexismo, o racismo.
Como sempre, a verdade não deve estar em nenhum dos extremos: Wilson está longe de ser um racista ou um genocida em potencial, assim como Gould não abandonou os principais postulados darwinistas. Os argumentos do debate acabaram se transformando em bandeiras usadas por indevidas mãos. Os criacionistas, pragas que ainda assolam a educação e combatem as teses evolucionistas, valem-se de maneira deformada das palavras de Gould para tentar demolir o legado de Darwin, procurando impedir  às vezes, com sucesso  constrangedor – o ensino da Evolução nas escolas. A extrema direita quer se valer do pretenso determinismo genético e dos argumentos de Wilson e Dawkins para justificar a mais do que falaciosa supremacia dos machos brancos ou para embasar rançosas teses eugênicas.
Infelizmente, esse é o fim habitual dos debates travados mais com o fígado do que com argumentos.
Boletim Mundo Ano 10 n° 4

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