Cláudio Camargo
O fracasso do golpe de Estado na Venezuela não encerrou a turbulência. Agora, o presidente Hugo Chávez está diante da verdadeira encruzilhada.
O surpreendente desfecho da tentativa de golpe de Estado contra o presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías, foi justamente saudado pelos quatro cantos como prova da maturidade democrática do país vizinho e da maioria da América Latina. Os governos, especialmente latino-americanos, rejeitaram a tentação autoritária de parte do empresariado venezuelano. A exceção foram os Estados Unidos, com altos funcionários da administração de George Bush fazendo vista grossa à ruptura da institucionalidade e chegando a culpar Chávez pela sua deposição.
De fato, a Casa Branca, principalmente a atual administração, nunca engoliu as bravatas do presidente venezuelano. Apesar de a Venezuela ser o terceiro exportador de petróleo para os Estados Unidos, Chávez não perde oportunidade de espicaçar Tio Sam, seja alardeando sua amizade com Fidel Castro, visitando Saddam Hussein, do Iraque, ou Muammar Kadafi, da Líbia, ou ainda condenando o bombardeio do Afeganistão.
A hostilidade, portanto, é recíproca. Há inclusive suspeitas, não inteiramente esclarecidas, de que os golpistas buscaram aval de funcionários americanos para a intentona e que receberam um discreto sinal verde.
Nada, de qualquer maneira, comparável ao apoio que os Estados Unidos deram aos conspiradores que derrubaram João Goulart no Brasil, em 1964, e principalmente, à fauna que devorou Salvador Allende no Chile em 1973.
O fracasso do golpe contra Chávez deveu-se, em grande parte, ao açodamento e à inabilidade política dessa patética figura que foi colocada na presidência interina, o empresário Pedro Carmona, presidente da poderosa Fedecámaras, a central sindical patronal. Acreditando que poderia administrar a Venezuela como uma de suas empresas, ele colocou de lado os aliados da véspera que permitiram sua ascensão ao poder a Confederação dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), que reúne os funcionários da estatal Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), e os militares e nomeou um ministério com seus pares.
Sem consultar os aliados, assim que tomou posse, Carmona baixou um decreto – que, soube-se depois, fora redigido um dia antes do golpe em que determinava a dissolução da Assembléia Nacional, fechava a Suprema Corte, cassava mandatos de dirigentes eleitos e prometia eleições só para daqui um ano. A reação negativa da comunidade internacional, principalmente do Grupo do Rio, capitaneada pelo Brasil, México e Chile, o anúncio de que Chávez não havia renunciado e as manifestações de milhares de “descamisados” pró-chavistas em frente ao Palácio Miraflores, a sede do governo, levou a cúpula militar a retirar o apoio a Carmona. Sua fugaz ditadura durou menos de 48 horas.
Mas o retorno à institucionalidade só foi possível graças à sublevação de unidades militares leais a Chávez, como a 42ª Brigada de Pára-quedistas, de Maracay, e o Regimento da Guarda de Honra, responsável pela proteção do palácio. É um precedente perigoso.
A eleição de Chávez à presidência, em 1998, politizou as Forças Armadas venezuelanas, que estavam afastadas do poder desde 1958, quando caiu a ditadura do general Pérez Jimenez.
Essa politização, aliás, teve origem muito antes, em fevereiro de 1992 quando Chávez na época tenente- coronel pára-quedista – liderou uma tentativa de golpe contra o então presidente Carlos Andrés Pérez. A rebelião foi sufocada, Chávez foi preso, mas deixou um barril de pólvora aceso nos quartéis. Tanto que, no mesmo ano, ocorreu outra tentativa de golpe contra Pérez, igualmente sufocada. É verdade que o oficial rebelde que acabou virando presidente se converteu às regras do jogo democrático, mas ele nunca deixou de ver as Forças Armadas como sujeitos das transformações sociais. Tanto que colocou oficiais em instituições públicas e os soldados em atividades civis.
Essas iniciativas dividiram os militares venezuelanos. Há uma corrente chavista, composta em sua maioria de oficiais que foram companheiros de Chávez na tentativa de golpe de 1992; uma corrente radicalmente anti chavista, de direita, que inclusive fica extremamente incomodada com o fato de ter que bater continência para um tenente-coronel, e uma maioria “constitucionalista”, que não morre de amores pelo presidente, mas defende as instituições. Essa corrente majoritária foi fundamental na deposição de Chávez e, depois, na sua recondução ao Palácio Miraflores.
Mas, além dessa fratura na cúpula das Forças Armadas, talvez o fator determinante do contragolpe vitorioso tenha sido os oficiais de média e baixa patente (majores, capitães e tenentes), que comandam diretamente a tropa, se identificam com o discurso populista de Chávez e se rebelaram contra seus comandantes. É nessa camada que o projeto político da “revolução bolivariana” se sustentou até agora: uma espécie de “cesarismo subalterno”, na medida em que se apóia na baixa oficialidade, em vez de organizar as massas em partidos políticos.
Daqui para a frente, Chávez terá que escolher, pois o equilíbrio atual é extremamente instável. Se ele mantiver seu apoio na base do Exército, poderá estilhaçar a cadeia de comando, com conseqüências políticas imprevisíveis. Mas Chávez pode se compor com o alto comando militar, hipótese que hoje parece ser mais provável.
Neste caso, o ex-tenente-coronel terá que enquadrar os oficiais subalternos.
Boletim Mundo Ano 10 n° 3
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