quarta-feira, 30 de março de 2011

WASHINGTON ENGRENA A INVASÃO DO IRAQUE

Se o regime iraquiano deseja a paz, deve (...) remover ou eliminar imediata e incondicionalmente todas as armas de destruição em massa, os mísseis de longo alcance e todos os equipamentos correlatos. (...) A ONU deve agir – do contrário, os Estados Unidos o farão. Meu país trabalhará com o Conselho de Segurança da ONU para obter uma nova resolução que contemple nosso objetivo comum. Se o regime iraquiano nos desafiar de novo, o mundo deverá agir de maneira decisiva para que o Iraque assuma suas responsabilidades. Não deve haver dúvida sobre o objetivo dos Estados Unidos. As resoluções do Conselho de Segurança serão aplicadas. (...) Ou a ação será inevitável.
(George W. Bush, em discurso perante a Assembléia-Geral da ONU, 12 de setembro de 2002)
Um ano depois dos atentados contra as torres gêmeas do WTC e o Pentágono, o presidente dos Estados Unidos dirigiu um ultimato à ONU. No discurso de 12 de setembro, George W. Bush prometeu que Washington “trabalhará com o Conselho de Segurança (CS)” para produzir uma resolução sobre a questão do Iraque mas, simultaneamente, definiu os termos dessa resolução. O ultimato não poderia ser mais claro: “A ONU deve agir do contrário, os Estados Unidos o farão”.
A “guerra contra o terror”, proclamada há um ano, e a ofensiva para a derrubada do regime de Saddam Hussein no Iraque, que está em preparação, assinalam uma reconfiguração do sistema internacional.
O desenvolvimento desses processos tende a estruturar as relações entre os Estados Unidos – a hiper potência do pós- Guerra Fria  e os demais participantes do sistema.
Entre as principais incógnitas a serem solucionadas encontra-se a função que a ONU poderá desempenhar no cenário mundial.
No discurso sobre o Estado da União, em janeiro, Bush reorientou a “guerra contra o terror”, escolhendo por alvos os Estados qualificados como participantes de um “eixo do mal”: o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. O combate ao terrorismo sofria uma brusca mudança de rota: os inimigos passavam a ser os Estados que estariam desenvolvendo armas de destruição em massa . Naquele momento, Washington tomava a decisão estratégica de eliminar o regime de Saddam Hussein.
“Cada uma das nações deve saber que, para os Estados Unidos, a guerra ao terror não é apenas uma política  é um compromisso”. Nessa guerra, que pode durar anos ou décadas, “não há imunidade e não pode existir neutralidade”. Foi com essas palavras que, em março, na solenidade que marcou os seis meses dos atentados terroristas a Nova York e Washington, o presidente americano formulou a Doutrina Bush. A nova estratégia, que toma o lugar da Doutrina Truman, descortina o horizonte de uma guerra de anos ou décadas contra organizações terroristas de alcance mundial e Estados que desenvolvam armas químicas, biológicas ou nucleares capazes de representar ameaça aos Estados Unidos .
A Doutrina Bush declara um estado de guerra permanente. Nesse contexto, suspende parte significativa das garantias políticas e individuais que formam a democracia americana e abre caminho para a utilização de instrumentos de exceção, como tribunais militares especiais e prisões preventivas sem acusação formal. O peso das “leis de guerra” tem recaído, principalmente, sobre os estrangeiros e a comunidade muçulmana nos Estados Unidos.
A Doutrina Bush é unilateralista.
Washington reserva-se o direito de definir, a cada fase, o inimigo e os meios para a sua supressão. “Não pode existir neutralidade”: a comunidade internacional está convocada a sustentar as iniciativas americanas e os Estados recalcitrantes sujeitam-se a sofrer pressões políticas e econômicas. Nessa moldura, as instituições internacionais  antes de todas, a ONU – devem funcionar como meros agentes de legitimação das iniciativas americanas. A própria OTAN, aliança liderada por Washington, vem sendo marginalizada pelos Estados Unidos: ficou de fora da operação militar no Afeganistão e sequer foi consultada sobre a projetada invasão do Iraque.
O princípio da “guerra preventiva
A Doutrina Bush assenta-se sobre o princípio da “guerra preventiva”. Rompendo os princípios consagrados pela ONU e a própria tradição da política externa americana, que definem o direito de guerra no quadro estrito da reação a uma agressão consumada, Washington proclamou o suposto direito de atacar primeiro para suprimir ameaças potenciais. Evidentemente, o princípio da “guerra preventiva”, se aplicado generalizadamente, teria o condão de cortar os fios tênues que sustentam a ordem internacional.
Basta imaginar o uso do novo “direito” pela Índia, contra o Paquistão, ou pela China, contra Taiwan... O presidente russo, Vladimir Putin, parece ter aderido ao princípio proclamado por Bush quando avisou ao CS que poderá atacar a Geórgia caso o governo dessa república não se engaje no extermínio dos rebeldes da Chechênia baseados no seu território.
A hipótese da “guerra preventiva”, declarada unilateralmente por Washington contra o Iraque, assustou a maior parte dos aliados europeus dos Estados Unidos. O primeiro-ministro da Alemanha, Gerhard Schroeder, afirmou que “nenhum soldado alemão participará dessa aventura”. Foi uma declaração surpreendente, pois partiu de um Estado parido pelos Estados Unidos, no início da Guerra Fria. Jacques Chirac, o presidente francês, não chegou a tanto mas exigiu o aval do CS para a deflagração de um ataque ao Iraque. Antes do discurso na ONU, Bush só tinha o apoio firme do fiel escudeiro Tony Blair, que desafia a maioria da opinião pública britânica, e declarações favoráveis do italiano Silvio Berlusconi e do espanhol José María Aznar, que representam Estados periféricos na arena diplomática mundial.
A oposição européia reflete, ao menos em parte, o temor de que o ataque possa romper de uma vez a frágil estabilidade geopolítica no mundo árabe e muçulmano . Mas, sobretudo, revela o desconforto dos aliados europeus face à Doutrina Bush.
O discurso de 12 de setembro na ONU representou uma mudança de tática de Washington. Bush abandonou a linha de ignorar olimpicamente a comunidade internacional e solicitou uma resolução do CS. Celso Lafer, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, ofereceu a sua interpretação para a nova postura americana: “É positivo o fato de Bush ter reconhecido as responsabilidades do CS em cumprir as resoluções existentes em relação ao Iraque”.
Indagado sobre o ultimato do presidente americano ao CS, Lafer preferiu avaliar que “Bush fez uma pressão diplomática legítima”.
A posição brasileira sobre o ataque ao Iraque oscila entre a reafirmação dos princípios da ONU e a busca de uma conciliação com o unilateralismo de Washington . As declarações de Lafer devem ser compreendidas à luz dessa oscilação diplomática. A “pressão diplomática” de Bush é um eufemismo para o ultimato puro e simples.
A mudança tática de Washington não implica nenhuma alteração estratégica.
Bush formulou um ultimato à ONU, para que ela formule um ultimato ao Iraque.
No mesmo passo, reafirmou a decisão americana de conduzir, unilateralmente, uma “guerra preventiva” caso o CS não subscreva a resolução apresentada pelos Estados Unidos. A hiper potência só reconhece as instituições internacionais como sombras do seu próprio poder. O multi lateralismo foi abandonado para todos os propósitos práticos, embora sobreviva como reminiscência retórica ou armadilha diplomática.
 DEPOIS DE SADDAM, O DILÚVIO?
Próxima Parada, Bagdá?”. Este é o título de um ensaio publicado na revista Foreign Affairs de março/abril, assinado por Kenneth M. Pollack, que foi diretor para assuntos do Golfo Pérsico no Conselho de Segurança Nacional americano entre 1999 e 2001.
O ensaio consiste numa defesa da tese de que os Estados Unidos devem promover, o quanto antes, uma invasão do Iraque destinada a destruir o regime de Saddam Hussein.
De acordo com os cenários de Pollack, o modelo do Afeganistão não serve para o Iraque, pois a oposição interna não seria capaz de realizar a tarefa de depor Saddam sequer sob a cobertura de uma violenta campanha aérea e com a ajuda de tropas de elite americanas. No Iraque, deveria ser organizada uma invasão clássica, precedida de uma campanha de bombardeios aéreos e iniciada pela tomada dos campos petrolíferos por tropas de elite.
A campanha aérea precisaria de 700 a mil aviões e algo entre um e cinco grupos de combate liderados por porta-aviões. A campanha terrestre, entre quatro e seis divisões, além de unidades de apoio. A força total mobilizada na invasão giraria entre 200 e 300 mil soldados. A reunião dessa força no Golfo Pérsico exigiria menos que cinco meses, talvez apenas três. A guerra, propriamente, um único mês ou pouco mais, incluindo a campanha aérea prévia.
Não são muitos os analistas militares que discordam. O diabo está não nos cenários bélicos, mas nos geopolíticos. Pollack sustenta que uma invasão vitoriosa solicita apenas o apoio regional do Kuwait, da Arábia Saudita e da Turquia.
O Kuwait é uma base essencial para a logística da campanha aérea e, provavelmente, para o trânsito das forças terrestres invasoras. A Arábia Saudita abriga excelentes bases aéreas e compartilha uma extensa fronteira seca com o Iraque, além de poder assegurar, junto com as pequenas monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo, um fluxo ininterrupto de petróleo para o Ocidente. A Turquia, além de oferecer bases aéreas, teria a função de proteger a minoria curda do norte do Iraque do perigo de uma vingança sangrenta de Saddam durante a fase inicial da operação.
O “otimismo” de Pollack mascara os verdadeiros problemas, que decorrem da fragilidade de toda a arquitetura geopolítica regional. A sua análise não oferece respostas convincentes para os focos de turbulência que poderiam degenerar em situações de caos.
1. A “questão palestina”. A violenta repressão israelense nos territórios ocupados e o apoio aberto de Washington a Israel formam um caldo de cultura extremamente carregado de sentimentos anti-ocidentais no mundo árabe e muçulmano. Diante da perspectiva de eliminação do seu regime, Saddam terá todos os incentivos para usar o seu pequeno arsenal de armas químicas e biológicas, acopladas a mísseis intermediários, contra Israel.
O governo de Ariel Sharon já declarou que, ao contrário do que ocorreu na Guerra do Golfo, em 1991, Israel reagiria a um ataque de Saddam. Esse cenário poderia provocar levantes palestinos e rebeliões contra os regimes pró-ocidentais em outros países árabes.
2. A “opção nuclear” de Israel. Sabe-se que Israel dispõe de um arsenal nuclear relativamente pequeno mas sofisticado e em plenas condições de operação. Um ataque químico ou biológico de Saddam contra Tel Aviv ou Jerusalém poderia, eventualmente, provocar mortes em massa de civis. Nessa hipótese, não se descarta que o governo de Sharon viesse a reagir por meio de um ataque nuclear a uma cidade do Iraque.
3. O futuro da monarquia saudita. A Arábia Saudita, protetora das monarquias do Golfo, é o pilar do “Oriente Médio petrolífero” . A monarquia saudita – conservadora, autoritária, obscurantista e corrupta  equilibra-se sobre as cordas de um estranho compromisso: a aliança externa com os Estados Unidos e a aliança interna com a seita islâmica puritana dos wahabitas. Até há pouco (e, talvez, ainda hoje), o dinheiro dos magnatas wahabitas financiava as operações de Osama Bin Laden, sob as barbas dos príncipes da imensa família real dos Al-Saud.
A aliança interna, que é o alicerce do Estado saudita, está submetida a terríveis tensões desde a Guerra do Golfo. A seita wahabita só aceitou conviver com tropas e bases americanas no país pois, em contrapartida, teve a liberdade de financiar os fundamentalistas islâmicos no exterior. Essa liberdade está sendo restringida desde o  11 de setembro de 2001. Uma nova operação militar americana baseada na Arábia Saudita provavelmente ultrapassaria a tolerância dos puritanos wahabitas. Não é casual que o governo saudita tenha se pronunciado, em termos categóricos, contra a projetada invasão americana do Iraque.
4. A estabilidade do Egito. Os Acordos de Camp David selaram, em 1979, a paz entre Egito e Israel e soldaram o alinhamento do Egito com os Estados Unidos. O regime nacionalista e autoritário egípcio tornou-se um dos principais pilares da “ordem americana” no Oriente Médio. Na Guerra do Golfo, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, perfilou suas tropas junto à coalizão internacional comandada por Washington. Ao lado dos sírios, os egípcios formaram o “componente árabe” da operação contra o Iraque.
O panorama mudou radicalmente nos últimos anos. Esgotou-se o ciclo de forte crescimento econômico impulsionado pela ajuda americana e por acordos de redução da dívida externa obtidos como compensação pela participação na Guerra do Golfo. Nessa conjuntura, o regime teme o descontentamento popular provocado pelo colapso dos acordos de paz na Palestina e pela decisão americana de atacar o Iraque. Apesar da extrema dependência financeira do país, Mubarak declarou a sua oposição à derrubada do regime de Saddam.
5. A Turquia e a “questão curda”. A Turquia, integrante da OTAN, é um fiel aliado dos Estados Unidos e, nos últimos tempos, tem cooperado militarmente com Israel. Mas os turcos temem os efeitos geopolíticos da invasão do Iraque. Um Iraque pós-Saddam seria, provavelmente, reorganizado em bases federativas, pouco centralizadas. Os curdos do norte iraquiano obteriam, ao que tudo indica, ampla autonomia regional. O regime turco enxerga esse cenário como o prelúdio para um pesadelo.
O povo curdo distribuiu-se numa área contígua, mas fragmentada por fronteiras internacionais, que abrange regiões da Turquia, Iraque, Irã, Síria e Armênia. O regime turco tem conseguido, nos últimos anos, golpear profundamente o movimento pela criação do Curdistão. Contudo, a configuração de uma região autônoma curda no Iraque, junto às fronteiras turcas, poderia estimular levantes dos curdos do sudeste da Turquia.
Boletim Mundo Ano 10 n° 6

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