por Thiago Lotufo e Beto Uechi
Injustiçados por quase 100 anos pela má fama de trogloditas peludos e briguentos, os homens das cavernas estão recuperando sua imagem. Novas pesquisas afirmam que eles cuidavam dos velhos e feridos, tinham uma linguagem e, se passassem por um banho de loja, andariam hoje pela rua sem ser reconhecidos
Psiu. Silêncio. Estamos observando uma caçada. E qualquer barulho pode afugentar a presa. Volte uns 40 mil anos no tempo e se esconda num dos arbustos ao redor. Está vendo os quatro caçadores? Parecidos com a gente, não são? Meio brutamontes, é verdade, mas são nossos parentes, os Homo neanderthalensis – ou apenas neandertais. Saíram bem cedinho de casa – quero dizer, da caverna –, pegaram suas lanças e partiram em direção a uma pequena floresta a cerca de 10 quilômetros de distância. Um outro caçador, o quinto membro do grupo, teve de ficar para trás desta vez. Seu braço esquerdo, ferido durante um embate com um rinoceronte, ainda não está totalmente recuperado e seu estado físico geral poderia comprometer a atual caçada.
Por sorte, não faz tanto frio. Deve estar uns 10 ºC. Eles chegaram aqui perto do riacho há algumas horas e se esconderam. Espera aí. Atenção. Parece que o chefe do grupo está sentido algum cheiro familiar na área. Opa. Demos sorte! Está vendo ali, aquele cervo com ar de perdido? Ele está chegando perto da água. É agora. Os caçadores saíram dos esconderijos e partiram para o ataque. A idéia é encurralar o bicho. Corre, corre, senão a gente perde a caçada. Que pique! O cervo está assustado. Conseguiram cercá-lo contra o penhasco. Agora é só enfiar a lança no pescoço. Pronto! Foi o próprio chefe quem tomou a iniciativa. A lança está cravada no bicho. Outros dois aproveitam para espetar suas armas também e garantir que a janta morra rapidamente. Ficou com vontade? Está querendo pegar o bicho para você? Calminha. Refreie seus instintos. Vamos voltar para o século 21. Abra a geladeira, pegue o Toddynho e relaxe. Era somente uma “ficçãozinha” para a gente imaginar uma caçada feita pelos neandertais.
O relato pode nunca ter ocorrido exatamente assim, mas é baseado em evidências encontradas em diversos sítios arqueológicos e mostra alguns aspectos da vida dos neandertais, espécie do gênero humano descrita na segunda metade do século 19. Vejamos: eles viveram há muitos anos, entre 230 mil e 28 mil anos atrás. Eles moravam em cavernas e o domínio de um clã não se estendia por longas distâncias (levavam a vida localmente, num raio máximo de 50 quilômetros). A caça era a principal atividade e eles a faziam em grupos não muito grandes, armados de lanças curtas e pesadas, que funcionavam para espetar as presas e não propriamente para lançá-las sobre elas. Por conta disso, machucavam-se com freqüência durante o embate com os animais. Eram fortes, atarracados e com músculos bastante desenvolvidos.
Viviam em temperaturas baixíssimas (de -25 ºC a +13 ºC) por causa dos períodos de glaciação da Terra. E comiam carne, muita carne.
O mais surpreendente, porém, é que o fato de você, leitor, estar na historinha acima olhando tudo bem de pertinho também não é tão ficção assim. É claro que você mesmo não poderia estar lá, há milhares de anos. Porém, alguém como você, assim como você, poderia estar lá, espiando na moita, sim. É que os homens modernos, os Homo sapiens como nós, dividiram a Europa com os neandertais por cerca de 10 mil anos, antes de eles sumirem há 28 mil anos. Isso mesmo. Registros fósseis mostraram que há 40 mil anos o Homo sapiens chegou ao Velho Continente. Ou seja, estivemos juntos no mesmo lugar e na mesma época por um bom tempo por isso é que por um instante da história, ali atrás, talvez tenhamos tido vontade de roubar a carne deles.
Mas os neandertais não são nossos ancestrais? Como, então, eles poderiam estar vivendo na mesma época e lugar dos modernos? Pois é. Esse negócio de ancestralidade parece que nunca vai ter consenso entre os pesquisadores. Um grupo acha que surgimos a partir dos neandertais. Outro não (veja o quadro na página 32). O primeiro é o dos multirregionalistas. Eles acreditam que todos os hominídeos fazem parte da mesma espécie (Homo sapiens) há 2 milhões de anos. Ou seja, o H. erectus (incluindo o H. ergaster) é uma variante do H. sapiens. Eles evoluíram na África e depois se espalharam para a Ásia e Europa até se tornarem homens modernos. Os neandertais, de acordo com esse ponto de vista, eram apenas uma população regional de homens modernos. Os 10 mil anos em que as “duas espécies” aparentemente distintas conviveram na Europa eram apenas um passo dessa evolução.
O segundo grupo é o dos defensores da teoria Out of Africa (“Fora da África”). Eles acreditam que existiram diferentes espécies de hominídeos – e todas, menos o H. sapiens, foram extintas. A teoria diz que o H. erectus saiu da África entre 1,5 e 2 milhões de anos atrás e deu origem a várias espécies (inclusive os neandertais) em continentes como a Europa e a Ásia. Os homens modernos teriam surgido apenas na África cerca de 150 mil anos atrás e, há 100 mil anos, começaram a migrar substituindo todas as populações do globo.
Quem tem razão? Difícil dizer, pois pesquisas sustentam as duas teses. O que se sabe, com certeza, é que atualmente existem mais de 80 sítios arqueológicos espalhados pela Europa, Oriente Médio e Ásia que ajudam os cientistas a desvendar melhor o hominídeo neandertal. Os paleoantropólogos (especialistas em antropologia do homem primitivo) não sabem precisar o tamanho da população de neandertais que habitou os continentes acima – a estimativa fica na casa dos milhares –, mas as escavações já forneceram quase 500 esqueletos da espécie, sendo que metade corresponde a crianças.
Um dos achados mais famosos aconteceu em 1856 numa caverna localizada no vale de Neander, no norte da Alemanha. Mineradores do local depararam com um crânio e uma porção de ossos em meio à lama da caverna. De início, acreditou-se que eram restos de um urso. Depois, alguns estudiosos disseram se tratar de um esqueleto humano, de um homem bastante antigo. E foi somente em 1864, após comparações com outros esqueletos que já haviam sido encontrados em 1830 na Bélgica e em 1848 na Espanha, que o fóssil ganhou um nome: Homo neanderthalensis, em homenagem ao local da descoberta.
Em 1908, no entanto, um esqueleto quase completo escavado em La Chapelle-aux-Saints, na França, deu margem para que o anatomista Marcellin Boule, então diretor do Instituto de Paleontologia Humana, em Paris, criasse uma imagem brutal dos neandertais. Numa ilustração aprovada por ele, ficou claro: o neandertal era uma besta peluda de braços longos e pescoço atarracado, incapaz até mesmo de ficar em pé por completo. Era uma falha evolutiva, uma espécie degenerada que nada tinha a ver com o Homo sapiens. Assim, estava criado o mito do homem das cavernas troglodita, mais parecido com um gorila que com o humano moderno.
A imagem de troglodita só começou a ser questionada na década de 50 quando anatomistas americanos reexaminaram o fóssil de La Chapelle-aux-Saints e notaram que aquele neandertal, de cerca de 40 anos de idade, sofrera de artrite. E que, por isso, tinha a postura curva. Eles afirmaram que as diferenças anatômicas para um ser humano comum eram muito pequenas. E mais: segundo eles, se um Homo neanderthalensis pudesse reencarnar e ser colocado no metrô de Nova York – desde que estivesse de banho tomado, com a barba feita e vestido com roupas modernas – talvez não chamasse mais atenção que qualquer outro habitante da cidade.
Mas o homem (e a mulher) de neandertal não era nenhuma Gisele Bündchen. “Eram baixos e atarracados como os esquimós”, diz Walter Neves, antropólogo da Universidade de São Paulo. As mulheres chegavam a 1,54 metro e 65 quilos de peso. Os homens tinham 1,66 metro e pesavam 77 quilos. As pernas e braços eram curtos, os ossos robustos e o corpo musculoso. O crânio era alongado com sobrancelhas proeminentes e a testa pequena. O nariz era grande e na região da mandíbula não havia um queixo. “Conseqüências da seleção natural e da adaptação ao frio intenso”, diz Rob Kruszynski, paleontólogo do Museu de História Natural de Londres, Inglaterra. O tamanho do nariz, por exemplo, ajudava a aquecer e umedecer o ar gelado e seco dos períodos de glaciação. O corpo pequeno lhes permitia maximizar a conservação de calor. E, também por causa do frio, eles chegavam a ingerir até 7 mil calorias por dia, quase três vezes mais do que nós comemos. Detalhe: 90% dessa dieta era baseada em carne.
E os pêlos? Eles eram peludos, afinal? Estudos demonstraram que os neandertais, no máximo, chegavam a ser do tipo Tony Ramos. Ou seja, estavam longe de ser parecidos com os homens-macacos que o cinema eternizou. Pêlos em excesso seriam uma desvantagem evolutiva. “Eles levariam a um super aquecimento.
Aventuras na História Edição 005 Janeiro de 2004
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