terça-feira, 1 de março de 2011

CINCO SÉCULOS DE LATIFÚNDIO

Raul Jungmann
Atual modelo de reforma agrária está esgotado
A injusta estrutura fundiária brasileira é antiga. Remonta a 1530, quando a Coroa Portuguesa dividiu o país em capitanias hereditárias. De lá para cá, percorremos o árduo caminho das sesmarias – grandes porções de terras doadas a quem se dispusesse a cultivá-las dando em troca à Coroa um sexto do que produzisse, modelo este que deu origem ao latifúndio e à grilagem (ocupação a ferro e fogo).
Só em 1850 o governo imperial procurou conter a guerra no campo editando a Lei das Terras, que proibia a ocupação de áreas públicas e determinava que a ocupação só poderia ser feita mediante pagamento em dinheiro. O modelo revelou-se mais uma vez excludente, pois manteve a desigualdade na distribuição da terra.
O advento da República não modificou o quadro.
Contraditoriamente, foi o regime militar (l964-84) quem deu os primeiros passos na direção de uma distribuição mais justa de terras. Foi instituído em 1964 o Estatuto da Terra, que permitia ao governo fazer uma reforma agrária mais profunda. Por motivos óbvios, apesar da ousadia da legislação, não houve por parte dos militares determinação  e empenho em fazê-la.
Com a redemocratização, em 1984, a bandeira da reforma agrária não foi retomada, em função das disputas ideológicas que paralisaram o processo. Só em 1985 o tema voltou a merecer atenção do governo. A partir daí a ação dos movimentos sociais, respaldados pela Igreja Católica, sensibilizou a sociedade urbana, os movimentos ampliaram-se em número com a liberdade política, enfim reconquistada.
A resposta não tardou. O crescente envolvimento da sociedade e a reação dos setores comprometidos com o latifúndio terminaram em confronto, que teve como palco os debates da Constituinte, em 1988. O embate, contudo, fortemente ideológico, não impediu que a reforma agrária tivesse seu conceito definido, mesmo que aquém daquilo que sonhavam os movimentos sociais. A partir daí, a terra que não cumprisse com sua função social, seria desapropriada para fins de reforma agrária. Em fevereiro de 1993 a lei nº 8.629 foi, enfim, regulamentada. E não parou mais de ser debatida, ampliada, enfim, de evoluir.
Em 1995, veio o impulso definitivo. No primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, a agricultura, com ênfase na reforma agrária, tornou-se uma das prioridades de governo. Paralelamente, movimentos sociais como o MST pressionavam o governo para que sua vontade política assumisse um caráter radical na direção da quebra do latifúndio. Foi uma “parceria” difícil, conflituosa.
Cinco anos depois, já foram assentadas mais de 372 mil famílias, perfazendo o total de 1,864 milhão de brasileiros. Um recorde, uma vez que nos 30 anos anteriores, desde a edição do Estatuto da Terra, apenas 218 mil famílias obtiveram o direito à posse da terra. Os números que poderiam ser aqui citados são muitos, e variadas  as ações. Os avanços de natureza legal, também. Acreditamos, porém, que a melhor maneira de evidenciar os avanços da reforma agrária é reconhecer que o atual modelo está esgotado.
Desenhado em meados dos anos 60, ele teve fôlego até que a reforma venceu os históricos bloqueios que o latifúndio lhe impunha, até que a democracia saísse vitoriosa e que, irreversivelmente, novas formas de internacionalização da economia exigissem de nós a quebra de padrões autárquicos – limitadores de nossas fronteiras e que nos acomodavam com o pão da sobrevivência.
O recurso à desapropriação de terras, por interesse social, por exemplo, até aqui o mais importante instrumento de reforma agrária, mostrou-se insuficiente, tanto pela redução do número de latifúndios como pela desvalorização dos imóveis rurais a partir do Plano Real. Com o novo modelo, já em execução, as terras não precisam mais ser desapropriadas, mas escolhidas pelos agricultores e adquiridas, a preços de mercado, com recursos financiados pelo Banco da Terra.
Frases...
A Lei de Terras de 1850 e a legislação subseqüente codificaram os interesses combinados de fazendeiros e comerciantes, instituindo as garantias legais e judiciais da continuidade da exploração da força de trabalho, mesmo que o cativeiro entrasse em colapso. Na iminência de transformações nas condições do regime escravista, que poderiam comprometer a sujeição do trabalhador, criavam as condições que garantissem, ao menos, a sujeição do trabalho. Importava menos a garantia de um monopólio de classe sobre a terra, do que a garantia de uma oferta compulsória de força de trabalho à grande lavoura. De fato, porém, (...) esse monopólio (...) dificultava o acesso à terra aos trabalhadores sem recurso.
(José de Souza Martins, O cativeiro da terra, São Paulo, Ciências Humanas, 1981, p. 59)
O conceito clássico de ocupação da fronteira implica que não há mais terras para serem incorporadas ao processo de produção. Essa idéia, entretanto, não permite compreender o processo recente de ocupação da Amazônia. Quando dizemos que a fronteira está se fechando rapidamente não estamos pensando que as suas terras estejam sendo ocupadas produtivamente. O “fechamento” não tem o sentido de utilização produtiva do solo mas sim o de que não há mais “terras livres”, “terras sem dono” que possam ser apropriadas por pequenos produtores de subsistência.
(José Graziano da Silva, A modernização dolorosa, Rio de Janeiro, Zahar, 1982, p. 116-117)
O próprio MST, que liderou centenas de invasões de terras ao longo dos últimos anos, deixa entrever essa nova realidade. Muitos dos seus militantes históricos não estão mais sob as lonas arregimentando potenciais invasores. Estão em outra trincheira, no embate com os bancos, negociando financiamentos para aplicar na produção de suas cooperativas, associações.
Como se vê, continuaremos em lados opostos, mas militando na mesma causa.
Entre outros desafios, estamos desenhando hoje um novo modelo institucional, um novo ministério, que se tornou do Desenvolvimento Agrário ao incorporar o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, até então no âmbito do Ministério da Agricultura e do Abastecimento. E, como novo ministério, temos uma nova missão, mais consistente, mais abrangente, mais complexa, e de muito mais responsabilidade. Afinal, o Brasil e o mundo mudaram social e economicamente.
Hoje, enfrentamos o desafio da qualidade e da descentralização. No que se refere a esta última, acreditamos que só vingará com a efetiva participação dos Estados e municípios.
Quanto ao salto de qualidade, precisamos da companhia de novos parceiros, da democratização das decisões, da racionalização dos processos de aquisição de terras e na aplicação de investimentos, e do casamento saudável da agricultura familiar aos planos municipais de desenvolvimento auto-sustentável.
Boletim Mundo Ano 8 n° 2

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