terça-feira, 1 de março de 2011

O latifúndio é um problema para todos os brasileiros

João Pedro Stédile
Muita gente, quando ouve falar de conflitos no campo, passeatas e acampamentos de sem-terras, acha que esse é um problema apenas dos pobres do campo. Poucos se dão conta de que a maioria dos problemas que existem na sociedade brasileira, em seu conjunto, têm sua origem no latifúndio.
O Brasil  diz a ONU – é o segundo país do mundo de maior concentração da propriedade da terra, e o de maior número de latifúndios. Segundo o censo agropecuário do IBGE de 1996, quase a metade de todas as terras privadas (45%) pertencem a apenas 1% dos proprietários. Há, no Brasil, algo como 45 mil grandes propriedades de área superior a mil hectares; em contrapartida, quase cinco milhões de estabelecimentos dividem o restante da terra, em pequenas parcelas. E mais de quatro milhões de famílias que trabalham na agricultura não têm o direito à terra. São os chamados sem-terra.
A origem da concentração da propriedade da terra no Brasil remonta ao período colonial. De 1500 a l850, todas as terras pertenciam à coroa, que cedia grandes extensões, como concessão de uso, aos nobres que tivessem capital para adquirir escravos e produzir para exportação (cana, café, cacau, algodão e pecuária extensiva para exportar couro).
Em meados do século XIX, graças à pressão dos ingleses, à revolta dos negros e à indignação demonstrada por alguns poetas, intelectuais e políticos brasileiros, a escravidão foi se tornando insustentável. Diante disso, o imperador D. Pedro II criou a lei nº 601, de 1850, conhecida como a primeira Lei de Terras. Ela estabelecia que somente poderia ser proprietário de terras quem tivesse condições de comprá-las à coroa.
Na prática, a lei de 1850 criou o direito à propriedade privada da terra, mas impediu que os negros libertos ou os pobres se transformassem em pequenos proprietários, pois não tinham dinheiro para comprá-la. Segundo o sociólogo José de Souza Martins, essa lei representou o casamento do capital com a propriedade da terra.
Mais de um século depois, o regime militar fez aprovar o Estatuto da Terra. Supostamente, a nova lei tinha, como motivação básica, impulsionar a reforma agrária e democratizar a propriedade da terra. Mas sua aplicação serviu apenas para entregar mais terras públicas aos capitalistas estrangeiros, aos bancos, aos grandes grupos econômicos que nada tinham a ver com a agricultura.
Nesse período, as empresas multinacionais acumularam uma área aproximada de 30 milhões de hectares. Os vinte maiores grupos econômicos brasileiros se apropriaram de 12 milhões de hectares. Recentemente, a revista Veja denunciou, em matéria de capa, que o maior latifundiário brasileiro, a construtora CR Almeida, adquiriu quatro milhões de hectares, no Estado do Pará. É uma área quase igual à da Bélgica, mas que não produz um pé de milho. É apenas uma “reserva de valor” para fazer especulação e ganhar dinheiro no futuro.
A herança colonial-escravocrata influencia as elites até hoje. Ser proprietário de terra ainda é sinal de prestígio social. É isso que explica, por exemplo, o fato de que o príncipe dos sociólogos brasileiros, aposentado pela USP, sendo senador da República e não tendo nenhum vínculo com a agricultura, resolveu comprar uma área de 1 200 ha.
A concentração da propriedade da terra no Brasil é a causa geradora de inúmeros outros problemas que afetam a toda a sociedade. Primeiro: a desigualdade social. Em nenhum lugar do mundo, os ricos são tão ricos e os pobres, tão pobres. A origem dessa desigualdade está no passado escravocrata e no monopólio da propriedade da terra, que excluiu de oportunidades a grande maioria da população brasileira negra e mulata. Também têm origem no latifúndio o desemprego, a fome e a marginalidade social.
A fome, que atinge todos os dias, de forma crônica, 32 milhões de brasileiros e a outros 33 milhões que se alimentam aquém das necessidades básicas, tem sua origem na má distribuição de renda e na forma como são utilizadas as terras. O Brasil cultiva apenas 10% de suas terras! E entre as terras cultivadas, a maior parte e as melhores áreas se destinam às culturas de exportação (açúcar, café, laranja, soja, cacau) e à pecuária extensiva.
A marginalidade social que gera a violência das grandes cidades é fruto do êxodo rural, que traz milhões do campo para a cidade. São seres humanos despreparados, sem renda, sem trabalho, que ficam à mercê do narcotráfico, do contrabando e de pequenos roubos nas periferias de cidades. Portanto, o problema agrário se transformou em gerador de inúmeros problemas sociais, que afetam a toda sociedade, inclusive a classe média urbana.
No final do século passado e início desse século, a maioria  das sociedades hoje desenvolvidas do hemisfério norte perceberam que a concentração da propriedade da terra restringia o desenvolvimento do mercado interno e da sociedade. Por uma razão muito simples:  mantinha a população do meio rural pobre, sem poder de compra.
Para resolver esse problema, realizaram a reforma agrária, ou seja, a distribuição de todas as grandes propriedades de terra. Lá, a reforma agrária foi rápida (realizada em apenas dois, três anos), massiva (atingiu todas as grandes propriedades) e procurou beneficiar ao maior número possível de camponeses.
Aqui, as elites nunca quiseram a reforma agrária, já que o modelo econômico sempre foi baseado na concentração de renda e na exportação. Além disso, toda a elite sempre foi proprietária de terras. Para os capitalistas brasileiros, não é necessário dividir a terra para continuar ganhando dinheiro. Eles não se importam com os pobres, com a nação, e muito menos com a sociedade.
Por isso, as medidas do governo, chamadas de reforma agrária, são apenas paliativas.
O governo é levado a desapropriar algumas fazendas somente quando os trabalhadores se organizam e pressionam o suficiente para criar um problema político. Mas isso não é reforma agrária. Nem no sentido clássico, feito pelas elites dos países industrializados, nem no sentido de uma estratégia para resolver o problema agrário brasileiro. A concentração da propriedade da terra continua em vigor, os camponeses continuam sendo expulsos para as cidades, a concentração de renda segue e aumenta o número de pobres.
Programa para a terra
Os trabalhadores rurais brasileiros, reunidos nas suas organizações e movimentos, defendem que é necessário fazer uma verdadeira reforma agrária com as seguintes características: 1.Democratizar o acesso à terra, desapropriando todos os latifúndios existentes, e mudar o texto da Constituição, estabelecendo um tamanho máximo da propriedade da terra (como existe em diversos países). Ninguém pode dizer por exemplo, que não conseguiria enriquecer com uma área de mil hectares.
2.Democratizar o acesso ao capital. Camponeses, pequenos agricultores e os beneficiários da distribuição de terras devem contar com empréstimos do capital necessário aos investimentos na produção, de tal forma que possam, inclusive, instalar suas agroindústrias em cooperativas.
Em cada município brasileiro onde forem instaladas agroindústrias haverá emprego para os jovens. Essa é também uma forma de combater o oligopólio agroindustrial que existe hoje.
3.Democratizar o acesso à educação, para que o povo do meio rural possa ter escolas, em todos os níveis. Um povo sem educação será sempre um povo subjugado.
4.Mudar o atual modelo tecnológico, totalmente dependente de agrotóxicos e das empresas multinacionais, e desenvolver um novo modelo, que preserve o meio ambiente, e a saúde dos camponeses e dos consumidores.
5.Reorganizar a agricultura brasileira, casando com um novo modelo econômico, que priorize o mercado interno e a distribuição de renda. Assim, todos os brasileiros poderão se alimentar melhor, a preços mais baratos e em maior quantidade.
Esses são os pilares básicos da reforma agrária que defendemos. Talvez pareça um sonho. Mas, como dizia o poeta, todo sonho sonhado coletivamente um dia será realidade. E o MST é esse esforço de sonhar coletivamente as mudanças sociais no Brasil.
Boletim Mundo Ano 8 n° 2

Um comentário:

  1. Ótimo post! As pessoas tem que tomar consciência de que essa questão faz parte de suas vidas, afinal ninguém come e bebe dinheiro, certo? Quem já se deu conta disso está de olho nas terras e nos recursos naturais, enquanto as massas estão amultuadas nas cidades correndo atrás de guardar mais e mais dinheiro.

    ResponderExcluir