O que significa para um país ter moeda própria?
Essa questão pode parecer puramente filosófica, mas é exatamente a questão que se coloca nesse momento para os argentinos. E não são poucos os que recomendam a adoção do dólar como moeda no país. Entre os advogados da tese, uma importante corrente do Partido Justicialista (peronista), hoje na oposição, e economistas argentinos que estão no Fundo Monetário Internacional (FMI).
A questão do dia é: será que os EUA querem mesmo segurar essa onda, ou seja, garantir que a moeda da Argentina seja o dólar? Ou, como dizia Garrincha, já combinaram com o outro time?
O Equador já perdeu sua moeda optou pelo dólar. Na União Européia, o Banco Central Europeu faz de tudo, especialmente segurar no alto as taxas de juros, para evitar que o euro se desvalorize ainda mais e o projeto da unificação perca a identidade monetária. Na Ásia, os custos da crise monetária e cambial ficaram claros desde o estopim da crise, iniciada na Tailândia, em 1997. Parece haver uma relação evidente entre a capacidade que um país tem de possuir uma moeda própria e seu peso no comércio, nas finanças e nas tecnologias mundiais.
É a tal da globalização, tão cantada em prosa e verso.
No caso dos países asiáticos, houve um tombo financeiro dos feios; mas o vigor da base tecnológica e sua firme conexão aos mercados de consumo de luxo dos países ricos deram oxigênio para que as coisas melhorassem relativamente rápido.
Isso ocorreu com a Coréia do Sul e mesmo a Tailândia (a Indonésia é um dos países que ainda não reencontrou seu eixo). A China é o Império do Centro: abriu sua economia, ma non troppo, e mantém sob rigoroso controle o sistema monetário e financeiro.
Corta. Dirija o olhar agora para a América Latina, em particular para a Argentina. O país é um caso crônico de atraso pela via da desindustrialização. De antiga potência regional, com peso em mercados internacionais relevantes para o Primeiro Mundo, sobrou muito pouco além de um entreposto financeiro da própria asfixia econômica. Os bancos fazem a cafetinagem da decadência da Argentina, sob o alto patrocínio do FMI e, portanto, dos Estados Unidos.
O presidente Bill Clinton, em visita no mês de julho a São Paulo, afirmou que, no final, na hora H, o governo americano intervém e segura as pontas do sistema argentino. Ou, pelo menos, das partes dele (bancos) que mais diretamente interessam ao “establishment” norte-americano (que são os grandes financiadores das campanhas eleitorais).
Talvez seja verdade: o destino de mais esta nação periférica está nas mãos de um punhado de financistas, reunido em ambientes cosmopolitas, mas controlados por um poder local. No caso do presidente Bush, as preferências econômicas são um pouco mais, digamos, “texanas”. Ou seja, pode correr muito sangue até que apareça alguém fazendo o papel de mocinho, ou mesmo a própria cavalaria.
Só que, no lugar do Far West, estamos no Far South; a Argentina mais ainda, e literalmente, geograficamente.
Um Far South que dá de dez a zero em termos de violência econômica, política e social –, nos tempos de conquista do Oeste americano.
Essa nova conquista tem um nome: ALCA. É em torno desse projeto que se decidirá o futuro da moeda na Argentina.
Para os mais radicais do pensamento econômico conservador dos EUA, o melhor a fazer é deixar o trabalho sujo para os “mercados”, entrando na última hora apenas se o governo argentino, literalmente, capitular.
A crise argentina já dissolveu, politicamente, o governo do presidente Fernando De La Rúa. O super-ministro Cavallo, ungido de poderes excepcionais, comanda a nau desgovernada. No caso, cada vez mais provável, de um naufrágio, Cavallo pode se afogar, mas De La Rúa é carta fora baralho. O ex-presidente Menem, um defensor extremado da dolarização, envolvido em escândalos e processos, parece ter perdido a capacidade de reerguer-se. Quem preencheria o vácuo de poder resultante?
O desenvolvimento da agonia argentina interessa de perto ao Brasil. O que está em jogo, no fundo, não é a taxa de câmbio do real ou as flutuações da taxa de juros. É o Mercosul, o mais importante projeto da política externa brasileira.
Um salto da Argentina no abismo da dolarização representaria, provavelmente, o enterro do bloco econômico do Cone Sul. E esse bloco é a pedra no caminho da ALCA.
Boletim Mundo Ano 9 n° 4
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