Douglas Santos
P ara quem visita a Serra do Navio pela primeira vez, é difícil negar o impacto que a paisagem nos causa. Não se consegue identificar muito bem onde se está. Casas aparentemente confortáveis, cercadas de jardins, nos levam aos subúrbios de cidades norte-americanas dos anos 1950, enquanto a floresta impõe sua presença como uma fronteira quase intransponível. A mina abandonada nos faz pensar sobre os estranhos fatores responsáveis pela construção de um lugar como aquele. Caminhando pela avenida principal, observam-se as ruas vazias, o comércio fechado, as antenas parabólicas e o silêncio raramente rompido pelos poucos automóveis que ali circulam.
A Serra do Navio foi e ainda é alvo de muita polêmica, sobretudo por parte dos que se preocupam com as questões ambientais. Como hoje podemos observar, essa cidade é o resultado do encontro explosivo da jazida de manganês, cercada pela floresta amazônica, e da Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi), empresa que obteve o direito de explorá-lo desde o início da década de 1950.
A Icomi planejou e construiu a cidade, definiu sua arquitetura, estabeleceu até o desenho dos móveis que ainda podem ser encontrados no interior das residências. Mais que isso, ofereceu aos trabalhadores condições raras para a realidade amazônica: salário, assistência médica, moradia e escola. E foi além: construiu a igreja onde os habitantes deveriam rezar e estabeleceu os horários em que os operários poderiam percorrer as ruas. Mas o toque de recolher estava dirigido exclusivamente aos trabalhadores braçais.
Controlando salários, moradia, fé e o horário de dormir, a Icomi, única e exclusiva empregadora, controlava a exploração do manganês, colocava-o nos trens de uma ferrovia que ela mesma construiu e despejava-o no porto de Santana, cidade à beira do Canal Norte do rio Amazonas, praticamente conurbada com Macapá. Hoje, a Icomi já não manda mais em Serra do Navio. Mas, suas marcas só serão apagadas se a cidade for definitivamente abandonada e a floresta invadi-la de vez, cobrindo casas, ruas, trilhos e as máquinas deixadas próximas à área de mineração.
A Serra do Navio é, atualmente, um município: tem prefeito e Câmara de Vereadores. Mas, sem a Icomi, não tem mais emprego, salário ou toque de recolher. A nova liberdade religiosa se revela, na paisagem, pela presença de um templo da Assembléia de Deus; o abandono, nos jardins maltratados que cercam o subúrbio norte-americano/amazônico.
As cicatrizes deixadas pela Icomi encontram-se em outros lugares. Basta visitar o que sobrou depois que o manganês se foi: crateras em meio à serra, mostrando os efeitos de uma erosão planejada para o lucro.
As encostas, recortadas em curvas de nível, já apresentam os resultados de um reflorestamento promovido por dois atores distintos: a própria Icomi, cumprindo os termos de seu contrato, e a floresta amazônica, num movimento mais lento mas, sem dúvida, mais diverso e complexo que o primeiro.
Na combinação dos dois abandonos se movimentam os habitantes que teimam em viver por ali.
Eles sonham com uma nova Icomi independente do nome que venha a ter ou do minério que queira explorar e com a oportunidade de obter uma ocupação. A alternativa, uma busca difícil pelo emprego e pelo salário, é o deslocamento para Macapá.
Assim é a Serra do Navio. Um lugar relativamente fácil de se chegar (para os padrões dos deslocamentos em território amazônico), uma paisagem que nos obriga a lembrar de tudo o que se discute sobre o chamado “impacto ambiental”. Os morros que continham manganês se tornaram estranhas crateras, uma parte da mata deu lugar ao urbano, a dinâmica do capital deixou a marca do abandono.
Mesmo que nos preocupemos com o desmatamento e o extermínio de espécies vegetais ou animais, o impacto fica por conta da perplexidade em que hoje vivem as famílias que teimam em resistir. A floresta avança e, ao que tudo indica, cobrirá as marcas deixadas pelo movimento das máquinas. Mas não conseguirá cobrir as marcas da violência que uma sociedade, orientada pela lógica do lucro, vai deixando sobre uma parcela dos que dela participam.
Tudo isso evidencia que, para conhecer a Amazônia, é necessário mais do que espírito aventureiro ou as ferramentas conceituais dos biólogos e antropólogos.
Ou ainda: mais do que a fé, de caráter civilizatório, que a tradição européia usa como instrumento eficaz de um genocídio secular. Para se conhecer a Amazônia, é necessário identificar os lugares, escutar seus habitantes e buscar compreendê-los como partícipes de um jogo cujas regras nem mesmo os poderosos dominam por inteiro.
Boletim Mundo Ano 9 n° 4
Muito interessante
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