sábado, 5 de março de 2011

UM TIRO NO PEITO DO RACISMO

Fátima Oliveira
O impacto da singularidade humana sobre o mundo tem sido enorme porque ela estabeleceu um novo tipo de evolução para suportar a transmissão, através das gerações, de conhecimento adquirido e comportamento. A singularidade humana reside essencialmente nos nossos cérebros. Expressa-se na cultura construída a partir de nossa inteligência e no poder que ela nos confere para manipular o mundo. (...) Os argumentos clássicos do determinismo biológico falham porque as características que invocam para fazer distinções entre grupos são, geralmente, produtos da evolução cultural. (...) Em síntese, a base biológica da singularidade humana nos conduz a rejeitar o determinismo biológico. (...) Como explicou o filósofo Stephen Toulmin: “A cultura tem o poder de impor-se à natureza a partir do seu interior”.
(Stephen Jay Gould, The mismeasure of man, Londres, Penguin, 1997, p. 354-355)
Uma das decorrências mais importantes das pesquisas sobre o Genoma Humano é a consolidação de uma constatação científica: geneticamente não existem raças humanas. Contudo, as pesquisas ainda não têm resposta para uma velha indagação.
Hoje sabemos como o DNA age na produção de proteínas, mas, como explicou na década de 1980 o biólogo Steven Rose, “apenas resulta surpreendente não compreendermos as regras pelas quais os genótipos se transformam em fenótipos.
É um fato surpreendente ainda que os seres humanos e os chimpanzés tenham em comum 99% de suas seqüências de DNA e nada confunde o  fenótipo de um chimpanzé com o de um humano.”
A Genética Molecular anterior às pesquisas do Genoma Humano afirma que  considerando-se o DNA como o material hereditário e o gene como unidade de análise biológica  é impossível dizer se tais estruturas pertencem a uma pessoa negra, branca ou amarela, pois o gene carrega possibilidades de caracteres e não os próprios caracteres. Luca Cavalli-Sforza, em A Geografia dos Genes (1995), prova que a diversidade genética humana é tão incomensurável que não é possível falar-se cientificamente em raças humanas. Essas constatações vêm sendo confirmadas pelas mais recentes pesquisas. Elas demonstram que a espécie humana (Homo sapiens) é uma só, e que dentro da espécie a variabilidade genética  impõe, como padrão de normalidade da natureza, a realidade de que cada ser humano é geneticamente único.
Mas, qual é a importância da ratificação de tais verdades científicas pelo Projeto Genoma Humano (PGH) e pelo Projeto da Diversidade do Genoma Humano (PDGH), em um mundo onde a opressão racial ou étnica é um fato incontestável?
Qual é o impacto dessas constatações quando se sabe que o conceito de “raças humanas”, se não foi cunhado, pelo menos foi apropriado e tem sido reciclado pela ideologia racista?
A opressão racial ou étnica é uma opressão sociocultural, política e ideológica.
O seu ponto de partida ou de referência é a raça e/ou a etnia e seu fundamento é a concepção biologicista de raça, que encerra a noção de superioridade racial.
Isso significa que a opressão racial ou étnidoutrina ca nas sociedades contemporâneas é um veículo de poder político dos opressores.
No Brasil, é senso comum considerar-se que raça consiste num grupo de pessoas parecidas fisicamente. Essa terminologia funciona também para referências à linhagem de família: “Aquela pessoa é de uma raça ruim ou de uma raça boa”. Nos dois casos, o que está por trás é uma concepção biologicista de raça, com o significado de pedigree. Na versão popularizada, e adotada inclusive por pessoas instruídas, raça reflete uma compreensão biológica de algo que usando uma linguagem atual  é fatalisticamente genético. Contudo, tais noções não têm qualquer sustentação científica.
A ciência e o “racismo científico”
Em Raça: conceito e preconceito, a geneticista brasileira Eliane Azevedo relata:
“A mais antiga referência à discriminação racial data de aproximadamente 2000 a.C. e consta de um marco erigido acima do rio Nilo, proibindo qualquer negro de atravessar aquele limite, salvo se com propósito de comércio. Fica óbvio que a discriminação era freqüentemente de ordem econômico- política, usando raça como referencial. Antes do século XV, as divisões antagônicas da humanidade não eram originadas por ideologias racistas.”
Dunn e Dobzhansky, em Raça e Sociedade, explicam: “Já no século V a.C., Heródoto  o pai da Antropologia, o grande historiador  escreveu com sutil ironia que os persas ‘se consideram muito superiores em todos os sentidos ao resto da humanidade e julgam os outros tanto mais excelentes quanto mais próximos deles; assim, os que ficam situados à maior distância, devem ser os mais degradados da humanidade’. A idéia de superioridade biológica baseada na raça aparece no Velho Testamento. Aí fica claro que Jeová fez um pacto com Abraão e com ‘sua semente’, isto é, com seus descendentes. No Novo Testamento há expressivas descrições do conflito entre este ponto de vista e a doutrina radical – e mesmo revolucionária  da fraternidade universal.”
Verena Stolcke, num artigo publicado em junho de 1991 na revista Estudos Afro-Asiáticos nos informa que a idéia de raça foi usada originariamente, no século XIII, pela étnidoutrina católica da “pureza do sangue” para segregar os cristãos dos não-cristãos (judeus e mulçumanos). É ilustrativo refletir que, por ocasião das Grandes Navegações, os europeus caracterizaram os nativos como sub- humanos e destituídos de alma.
Mas eis que, em 1859, o naturalista inglês Charles Darwin publicava o livro Origem das Espécies, onde se explicita que seres da mesma espécie nascem da mesma fonte e que as espécies evoluem. Essas descobertas e as idéias que delas emanam são opostas ao racismo. Antes do reconhecimento das leis de Mendel, a grande dificuldade dos classificadores raciais consistia na ignorância das leis que regem a hereditariedade.
Quando as leis de Mendel passaram a ser aceitas, os antropólogos deram início à revisão dos seus conceitos sobre raça. Adotaram o patrimônio genético e o mendelismo como novo paradigma de suas classificações, embora durante longo período biometria e genética tenham andado de braços dados.
Eliane Azevedo elucida: “O que a genética das populações nos ensina (...) é que as diferenças genéticas individuais  isto é, entre duas ou mais pessoas (pertencentes ou não ao mesmo grupo racial) são bem maiores que a diferença genética média entre grupos raciais diferentes. Por exemplo, as diferenças genéticas entre duas pessoas brancas são maiores que a diferença genética média entre brancos e pretos.”
O que chama muito a atenção na dinâmica do racismo é a sua hábil e sagaz capacidade de transmutação, sua maleabilidade para se adequar e sempre adquirir a cara do seu tempo, apesar de o paradigma ser sempre o mesmo. Os conhecimentos da Biologia Molecular dizem, um a um, sem exceção, exatamente o contrário de tudo aquilo que os racistas vêm, através dos tempos, usando a favor de sua doutrina. O racismo repousa, pois, sobre uma incomensurável mentira.
As pesquisas sobre o Genoma Humano oferecem, além de ferramentas científicas de combate ao racismo, inúmeras hipóteses para aplicações positivas, tais como o diagnóstico mais preciso das doenças genéticas e talvez até a cura de algumas delas. Mas a aplicação dos novos conhecimentos poderia servir a intentos eugenistas, desde a discriminação intra-uterina (e até na “proveta”!) até a modificação da espécie humana e o estabelecimento da discriminação genética.
Esses empreendimentos repousam sobre bases racistas e sexistas históricas, todas iluminadas pela aura do fatalismo genético  a idéia reducionista e equivocada de que os genes podem tudo, são oráculos infalíveis e funcionam sempre sem interação ambiental!
Boletim Mundo Ano 8 n° 5

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