sábado, 5 de março de 2011

Todos somos igualmente diferentes

José Arnaldo Favaretto
No século XIX, havia uma idéia muito difundida de que as diferentes “raças” humanas eram descendentes dos filhos de Noé. Essa crença avançou século XX adentro, junto com a opinião segundo a qual negros teriam menor capacidade intelectual que brancos, “comprovada” por esdrúxulas medições do volume da caixa craniana. Todas essas noções, com suas implicações morais e éticas, são demolidas pela própria definição de espécie.
Desde o século XVII, os taxonomistas (especialistas em classificação) utilizam critérios morfológicos para agrupar os seres vivos semelhantes. Contudo, tais critérios podem gerar confusão.
Um exemplo: entre as diversas variedades de drosófilas, há duas (Drosophila pseudoobscura e Drosophila persimilis) morfologicamente idênticas. Porém, quando cultivadas juntas, fêmeas de uma variedade e machos da outra não se cruzam! Essa constatação põe em xeque a definição de espécie baseada exclusivamente em critérios morfológicos.
No século XX, o conceito de espécie passou a envolver aspectos reprodutivos. Classicamente, diz-se que pertencem à mesma espécie os seres vivos que podem cruzar-se livremente na natureza e gerar descendentes férteis. Mais uma vez, porém, há exemplos que colocam em dúvida tal definição: um enorme macho são bernardo não pode cruzar com uma pequena fêmea chiuaua. Isso significa que os dois cães não pertencem à mesma espécie?
Dobzhansky e Mayr sugerem que “espécies são grupos de populações que, reproduzindo-se sexuadamente, compartilham informações genéticas e mantêm um patrimônio genético comum”.
De que maneira essa definição altera a compreensão do que acontece com os cães do exemplo anterior? Em condições naturais, indivíduos de algumas entre as diversas raças de cães não se cruzam, como um macho são bernardo e uma fêmea pequinês. No entanto, podem ocorrer trocas de genes entre populações dessas duas raças. Para isso, basta que outras raças de cães funcionem como uma “ponte genética”, permitindo o fluxo de genes entre são bernardo e pequinês, que pertencem à mesma espécie .
A movimentação de genes (ou fluxo gênico) através das populações confere “unidade genética” às espécies, que são reprodutivamente isoladas umas das outras. Pode-se, então, retornar à primeira pergunta: todos os seres humanos pertencem à mesma espécie? Obviamente sim! Não há isolamento reprodutivo entre seres humanos e o fluxo de genes ocorre livremente.
Conceitos de espécie e raça
Reinos, classes, ordens, gêneros e espécies são categorias taxonômicas, isto é, de classificação. De todas elas, espécie é a única que pode ser determinada com base em critérios naturais, ainda que passíveis de alguma controvérsia. As categorias mais altas (reinos, classes, ordens e gêneros) e a mais baixa  a subdivisão das espécies em raças  são arbitrariamente determinadas, a partir de critérios que podem variar de um grupo de pesquisadores para outro. A espécie humana, por exemplo, já se viu reunida de diferentes formas com seus parentes da ordem dos primatas .
Embora a espécie seja a unidade básica da classificação, não é a menor categoria taxonômica. Populações geograficamente isoladas de uma mesma espécie podem reunir tantas distinções anatômicas, fisiológicas e bioquímicas  que se torna possível distinguir seus membros. Entretanto, ainda que distintos, eles mantêm a capacidade de compartilhar seu patrimônio hereditário, ou seja, pode ocorrer fluxo gênico. Tais populações chamam-se subespécies (ou raças).
Um caso é verificado entre as girafas (Giraffa camelopardalis).
O rio Tana, no Quênia, separa duas populações desses animais. Na margem ocidental, predominam as girafas da subespécie G. camelopardalis rotschildi; na margem oriental aparece a subespécie G. camelopardalis reticulata. Embora fenotipicamente distintas, as girafas dessas duas subespécies cruzam-se normalmente em zoológicos, e híbridos já foram encontrados na natureza.
A divisão de uma espécie em subespécies só é aceita se os grupos populacionais são separados quanto a aspectos fenotípicos que variam “em crise” e não “em lise”. O que isso significa? A análise de exemplares de gramíneas da espécie Achillea lanulosa, encontrada na América do Norte, revela que a estatura dos pés varia gradativamente entre 15cm e 75cm. Trata-se de uma variação gradativa, ou seja, “em lise”. Por outro lado, ao se observar as duas subespécies de girafas, nota-se que há animais cuja pelagem exibe placas coloridas grandes e aproximadamente quadradas (subespécie reticulada); em outros, há placas pequenas e irregulares (subespécie rotschildi). Não existem formas intermediárias: a transição entre uma forma e outra é abrupta (ou “em crise”).
Ao se comparar diversos grupos populacionais humanos, constata-se que não há características distintivas que variem “em crise”. A cor da pele, critério muito usado para segregar pessoas, exibe uma variedade imensa de tonalidades intermediárias entre os fenótipos extremos (branco e preto). Na espécie humana, existem características que variam “em crise” e formam classes fenotípicas determinadas, como os grupos  sangüíneos do sistema ABO. Porém, os diversos fenótipos (sangue do tipo A, B, AB ou O) são encontrados em diversos grupos populacionais humanos, não servindo para distingui-los.
O ser humano atual tem mais de 150 mil anos. Originou-se na África oriental e, há 100 mil anos, começou sua migração para a Ásia e a Europa. Ao contrário do que já se pensou, ocorreram várias ondas migratórias e, também, movimentos reversos.
Conseqüentemente, entre as diversas populações humanas  cujas diferenças refletem somente a adaptação a diferentes condições ambientais  nunca chegou a se consolidar o isolamento geográfico indispensável para a formação de subespécies.
A acumulação de divergências fenotípicas é o resultado da seleção natural atuando  nos diversos ambientes. Na África, por exemplo, a cor escura da pele representa uma proteção fundamental contra a exposição excessiva do material genético celular à radiação ultravioleta. Já a pele clara  selecionada nas populações que ocuparam a Europa central e setentrional  permite a síntese adequada de vitamina D, cuja conversão na forma ativa a partir de precursores inativos presentes nos alimentos é dependente da radiação UV. Sem isso, o raquitismo impediria a sobrevivência humana em áreas afastadas do Equador, que recebem menor insolação.
Hoje, as diferenças entre os grupos populacionais humanos tendem a se atenuar, em virtude do fluxo constante de pessoas.
Se o intercâmbio genético em Homo sapiens não é ainda mais amplo, isso se deve exclusivamente a fatores sociais e culturais, e não ao patrimônio genético, que é comum. O pesquisador brasileiro Sérgio Danilo Pena, que participa do Projeto Genoma Humano, explica: “Eu, que sou branco, sou geneticamente tão diferente de uma  outra  pessoa branca quanto de um negro africano. Se eu tiver acesso às ‘impressões digitais’ do DNA de dez europeus, dez ameríndios e dez chineses, não vou saber quem é de qual grupo.
Todo mundo é diferente!” Cada ser humano é único, portador de sua identidade genética. Todos pertencem a uma só espécie que não se divide em subespécies. O resto é preconceito.
Boletim Mundo Ano 8 n° 5

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