A consolidação vertical do Mercosul, ou seja, seu aprofundamento além da área de livre comércio com união aduaneira e tarifa externa comum, e sua ampliação horizontal, com a incorporação de alguns novos membros e a associação de parceiros por meio de acordos, deverão ser uma das linhas-mestras da política externa brasileira nestes próximos anos.
Esse será o instrumento que nos permitirá participar com intensidade das negociações para a Área de Livre Comércio das Américas (...).
(Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia brasileira, Rio de Janeiro, Lacerda, 1999, p. 70)
A pauta é vasta, abrangente, quase genérica. As metas declaradas, modestas.
Mas não há como esconder: a Reunião de Cúpula Sul-Americana de Brasília representa um elo crucial no mais ambicioso empreendimento de política externa do Brasil em todo o pós-guerra. Trata-se de fincar os pilares de um bloco econômico e político de dimensão subcontinental e criar uma plataforma coletiva para a inserção da América do Sul na diplomacia da globalização.
Tudo começou com o Mercosul. O Tratado de Assunção, firmado em 1991 entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, estabelecia a meta da união aduaneira e um modelo de integração baseado no conceito de regionalismo aberto. A união aduaneira é um bloco econômico assentado sobre o livre comércio e definido por uma tarifa externa comum. Essa meta já tornou-se realidade, embora a tarifa comum ainda esteja sujeita a diversas exceções e acordos setoriais temporários.
Mas a crise cambial que atingiu a moeda brasileira em janeiro de 1999 revelou o sentido de uma encruzilhada: ou o Mercosul será mais que uma união aduaneira, ou não conseguirá manter-se sequer como união aduaneira. A desvalorização do real reduziu subitamente os saldos comerciais da Argentina com o Brasil e abriu caminho para uma gritaria protecionista nos meios políticos e empresariais argentinos. Sobretudo, porém, a recessão brasileira provocou queda abrupta no intercâmbio dentro do Mercosul.
A convivência do sistema de câmbio flutuante do Brasil com o regime de câmbio fixo da Argentina é uma receita para crises futuras, associadas a realinhamentos do valor relativo das duas moedas. A solução está na unificação monetária do bloco, através da criação de uma moeda regional.
O caminho até essa meta, ainda distante, começa pela busca de uma articulação das políticas de juros dos dois países.
O regionalismo aberto já foi colocado em prática, através da conclusão de acordos de livre comércio do Mercosul com o Chile e a Bolívia. Está sendo costurado um acordo desse tipo entre o Mercosul e a Comunidade Andina. No horizonte, encontra-se o projeto de uma zona comercial sul-americana, articulada ao redor de um Mercosul de cinco integrantes plenos (depois da provável incorporação do Chile).
Passos à frente e para trás
A trajetória do Mercosul oscilou ao sabor dos avanços e recuos do projeto dos Estados Unidos de construção de uma zona hemisférica de livre comércio, “do Alasca à Patagônia”. A Iniciativa para as Américas, anunciada em 1990 pelo então presidente George Bush, precedeu o próprio Tratado de Assunção. O Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), assinado em 1992 entre os EUA, o Canadá e o México, representou a pedra fundamental do edifício projetado em Washington. A sua gradual expansão, através da incorporação seletiva de novos membros, parecia uma estratégia destinada a condenar o Mercosul a uma existência breve e irrelevante.
Mas o Nafta estancou. Em 1994, ano em que começou a vigorar oficialmente, o México mergulhou em crise política e institucional com a revolta indígena de Chiapas e, meses depois, foi sacudido por uma crise cambial seguida por inadimplência externa e depressão econômica. Enquanto o México definhava, o lobby protecionista ganhava força no Congresso americano e cortava no nascedouro as negociações para a incorporação do Chile ao Nafta. Assim, surgiu a oportunidade para a assinatura dos tratados de associação do Chile e da Bolívia ao Mercosul.
O presidente Bill Clinton definiu uma estratégia alternativa. Em meados da década, lançou o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), com entrada em vigor prevista para 2005. No lugar da ampliação do Nafta, a estratégia de Clinton prevê sucessivas rodadas de negociações multilaterais, com reduções setoriais de tarifas de comércio, até a plena instalação da zona hemisférica.
Nesse contexto, o Brasil desenhou todo o seu planejamento em torno da consolidação do Mercosul e criação de uma zona comercial sul-americana. O Mercosul conduz, simultânea e paralelamente às negociações da Alca, um processo de negociações com a União Européia. A idéia é utilizar o bloco europeu como contraponto à hegemonia hemisférica dos Estados Unidos, a fim de ampliar a capacidade de barganha do país.
Desde o início, o Brasil substituiu o velho conceito de América Latina pelo quadro geopolítico da América do Sul . A criação de uma zona comercial sul-americana destina-se a estabelecer um balanço de forças mais equilibrado nas negociações da Alca. Na condição de líder do bloco sul-americano, o Brasil espera impor limites à redução de tarifas nos setores de alta tecnologia e serviços e bombardear o protecionismo americano em setores industriais tradicionais, como a siderurgia, os têxteis e os calçados.
As pretensões brasileiras estariam fadadas ao fracasso se o tabuleiro fosse confinado aos limites da economia. Nessa esfera, uma ofensiva de Washington, pela via de concessões comerciais seletivas a países sul-americanos, seria capaz de reduzir a pó a cuidadosa articulação diplomática de Brasília. Então, o Brasil ampliou o próprio tabuleiro, definindo metas políticas e estratégicas para a integração sul-americana.
No Mercosul, foi formulada uma “cláusula democrática” só podem participar do bloco os países comprometidos com o respeito às liberdades civis e políticas. O mecanismo surtiu efeito no caso paraguaio, contribuindo para impedir, em duas oportunidades recentes, a consumação de golpes militares. A “cláusula democrática” confere uma personalidade política ao Mercosul, enraizando-o em terreno mais profundo que o de um simples bloco econômico.
Nas circunstâncias atuais, esse critério tende a excluir o ingresso pleno do Peru, submetido ao regime autoritário de Fujimori, e da Colômbia, cujas instituições políticas foram esfrangalhadas pela guerra civil . Mas ele não se aplica a Estados associados por meros laços de livre comércio.
No plano institucional, a pauta da Cúpula de Brasília prevê a discussão de temas como a segurança coletiva, o combate ao narcotráfico e ao terrorismo, a repressão ao contrabando. Nos meios diplomáticos brasileiros sugere-se que as instituições continentais de segurança erguidas na Guerra Fria e lideradas pelos Estados Unidos a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) não têm utilidade no contexto internacional atual. A criação de mecanismos sul-americanos de segurança coletiva permanece, ainda, no terreno das hipóteses. Uma iniciativa nessa direção provocaria forte enxaqueca em Washington, mas inscreve-se na lógica política deflagrada pela Cúpula patrocinada pelo Brasil.
No plano estratégico e geopolítico, uma das novidades mais importantes são os esforços para a integração física da América do Sul . As conexões viárias projetadas para soldar as vertentes do Atlântico às do Pacífico têm o potencial de configurar um espaço sul-americano de fluxos e intercâmbio, ancorando o espaço econômico e político em construção.
As apostas são altas. O jogo será duro.
Boletim Mundo Ano 8 n° 4
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