sábado, 5 de março de 2011

A segunda morte da América Latina

Na época colonial, não existia uma “América Latina”. O “Extremo-Ocidente”  expressão inspirada de Alain Rouquié para acentuar a filiação da América aos valores e à cultura da Europa – podia ser dividido em conjuntos geopolíticos associados às potências metropolitanas: América Britânica, Hispânica, Lusitana e Caribenha. A “América Latina” foi uma invenção francesa da segunda metade do século XIX, designada para traçar uma fronteira entre os Estados Unidos e o restante do Novo Mundo. O terreno no qual foi semeado o novo conjunto geopolítico tinha sido adubado pelas cinzas do sonho bolivariano.
Na década de 1820, quando a Libertação concluiu-se, a América Hispânica estava fragmentada em diversos Estados oligárquicos, submetidos às elites criollas dos antigos vice-reinados e capitanias coloniais. Inconformado, Simón Bolívar, o maior dos generais libertadores e, então, presidente da Grã-Colômbia, decidiu empreender a última tentativa de salvação da unidade hispano-americana e convocou o Congresso do Panamá. Mas o projeto de criação de uma vasta confederação dos Estados oriundos do império espanhol fracassou melancolicamente.
O Congresso, reunido em 1826, teve a participação apenas da Grã-Colômbia, Peru, México e Federação Centro-Americana.
Nas décadas seguintes, o sonho de Bolívar, manipulado pelas elites governantes, degenerou em comédia. Sucessivos “congressos continentais”, assistidos por diminuto número de países, assinaram ambiciosos “tratados de confederação”, que nunca saíram do papel. Enquanto isso, a influência crescente dos Estados Unidos, assentada sobre a Doutrina Monroe, de 1823, preparava a moldura para a liderança efetiva de Washington em toda a América.
Foi nesse contexto que a França entrou em cena. No México, o governo dos liberais de Juárez tinha quebrado a espinha dos conservadores e expropriado os bens do clero. Em 1861, a decisão de suspender o pagamento da dívida pública serviu como pretexto para a intervenção militar francesa. A potência européia tirou do bolso do  colete o arquiduque Maximiliano, da Áustria, e coroou-o imperador do México.
A França de Napoleão III, nostálgica dos tempos gloriosos de Napoleão Bonaparte, pretendia desse modo estabelecer uma esfera de influência na América. Na época, Michel Chevalier elaborava o projeto do pan-latinismo,  a unidade histórica dos “povos latinos”, supostamente ancorada em uma comunidade lingüística, cultural e racial. A etiqueta da “América Latina”, oriunda desse projeto, funcionava como mecanismo para a projeção da influência francesa sobre o México, a América Central e a América do Sul. O rio Grande tornava-se uma fronteira cultural separando a “América Anglo-Saxônica” do conjunto dos “povos latinos” do Novo Mundo.
Nós somos franceses
A aventura mexicana durou pouco. Em 1867, com apoio dos Estados Unidos, o exército republicano derrubou Maximiliano e restaurou o governo de Juárez. O pan-latinismo, destroçado no campo de batalha político, retrocedeu para a trincheira cultural, manifestando-se pela adesão das elites hispano-americanas e brasileiras à tradição lingüística e literária francesa. Até a Segunda Guerra Mundial, os filhos dos latifundiários, banqueiros e comerciantes eram enviados para temporadas de estudos em Paris, não em Nova York ou Londres, e o francês, não o inglês, era a língua chique dos salões e colunas sociais.
No pós-guerra, a “América Latina” foi ressuscitada como projeto geopolítico. A hegemonia estratégica dos Estados Unidos no “Hemisfério Ocidental” estava soldada pela OEA e pelo Tiar, criados no alvorecer da Guerra Fria. Mas, no plano econômico, pegava fogo a discussão dos caminhos para o desenvolvimento e a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), um órgão da ONU, sob a influência das idéias do economista argentino Raúl Prebisch, que enxergava na industrialização protegida a redenção para o subdesenvolvimento.
Na Europa, a Comunidade do Carvão e do Aço, de 1952, e o Mercado Comum, de 1957, acendiam esperanças que repercutiram na América Latina. A Conferência de Bandung, de 1955, e a preparação para a Conferência dos Países Não-Alinhados, que se realizaria em 1961, colocaram em circulação o conceito de Terceiro Mundo e a idéia da cooperação internacional dos países subdesenvolvidos. Nesse contexto, em 1960, nasceu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc). Criada pelo Tratado de Montevidéu, a Alalc reunia o México e todos os Estados independentes sul-americanos (na época, as três Guianas eram colônias).
A Alalc refletia o percurso de industrialização por substituição de importações seguido pelas principais economias do subcontinente: Brasil, México e Argentina. A lógica implícita no acordo era a da ampliação, para o plano macro-regional, das políticas de proteção alfandegária adotadas nos mercados nacionais. Sob o influxo das noções de Terceiro Mundo e desenvolvimento autônomo, a fantasia geopolítica de origem francesa ganhava uma segunda chance.
A meta ambiciosa da Alalc, realçada pela vastidão do espaço geográfico que recobria, chocou-se desde o início com as desigualdades econômicas internas. As divergências entre os “Três Grandes” latino-americanos e os demais membros sabotaram os esforços de integração.
O objetivo de constituição de uma zona de livre comércio foi adiado de 1973 para 1980 e, depois, abandonado. Em 1980, um novo Tratado de Montevidéu enterrava a Alalc, substituindo-a pela Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração (Aladi).
A nova organização conservava, mas apenas no papel, a velha meta da zona de livre comércio.
Não estabelecia prazos ou mecanismos de integração. Apresentava-se como um marco jurídico para a formação de blocos regionais menores, como o próprio Mercosul.
A “América Latina” viveu duas vezes. Na primeira, como castelo de cartas erguido por uma potência imperial européia. Na segunda, como tradução do Terceiro Mundo para o “Hemisfério Americano”. O projeto brasileiro de integração sul-americana assinala a sua segunda morte. Outra ressurreição é coisa muito improvável.
Boletim Mundo Ano 8 n° 4

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