As massas operárias que não foram organizadas apresentam um problema perigoso, porque a massa mais perigosa é a massa inorgânica. A experiência moderna demonstra que as massas operárias melhor organizadas são, sem dúvida, as que podem ser dirigidas e melhor conduzidas (...). A falta de uma política social bem definida conduziu à formação em nosso país dessa massa inorgânica. (...) Só há uma forma de resolver o problema da agitação das massas, e ela é a verdadeira justiça social na medida de tudo aquilo que seja possível para a riqueza do país (...). Ir mais além é marchar para o cataclisma econômico; permanecer muito aquém é marchar para o cataclisma social. Comenta-se, senhores, que sou um inimigo do capital, mas (...) não encontrarão nenhum defensor, digamos, mais decidido que eu, porque a defesa dos interesses dos homens de negócios, dos industriais e comerciantes é a própria defesa do Estado.
(Discurso de Juan Domingo Perón, em 3 de setembro de 1944, na Bolsa de Comércio de Buenos Aires).
O desmanche financeiro detonou o furacão social, que deflagrou um processo de implosão do Estado argentino. Depois do colapso do sistema cambial do peso/ dólar, em dezembro, com a queda do super ministro Domingo Cavallo, a mobilização popular, nos cacerolazos (panelaços), provocou a renúncia do presidente Fernando De La Rúa, da União Cívica Radical (UCR). Na turbulenta transição que se seguiu, um semi golpe parlamentar anulou a convocação de eleições extraordinárias e gerou o “governo de salvação nacional” liderado por Eduardo Duhalde, do Partido Justicialista (PJ), de origem peronista.
O “governo de salvação nacional” tem o apoio dos dois grandes partidos tradicionais, e também da Frente por um País Solidário (Frepaso), que participava da coalizão fracassada de De La Rúa. Mas o furacão social não foi debelado. O jornalista Horacio Verbitsky, do diário argentino Página 12, captou a instabilidade da conjuntura, na sua análise da reunião do gabinete de governo do dia 3 de fevereiro, que decidiu a “pesificação” da economia: “A reunião de gabinete (...), com Raúl Alfonsín sentado à direita do presidente provisório Eduardo Duhalde, em uma mesa forrada de justicialistas, radicais e frepasistas é própria de um fim de regime”.
No fundo, o país vive o encerramento de um ciclo histórico, iniciado com a industrialização, nas décadas de 30 e 40, e marcado pela emergência do peronismo. A crise institucional e política, que se arrasta sem solução aparente, assinala a morte da velha Argentina.
Nas primeiras décadas do século XX, a Argentina ganhou a alcunha de “celeiro do mundo”. Os grãos, a carne e o couro do Pampa abasteciam a Europa e sustentavam o comércio e as finanças de uma Buenos Aires cosmopolita e sofisticada. A vasta classe média encontrava expressão política na UCR, que em 1916, com Hipolito Yrigoien, derrotou os partidos oligárquicos em eleições livres e inventou a Argentina urbana e liberal.
Em 1929, a estabilidade política ruiu sob o influxo do crash da Bolsa de Nova York. Yrigoien foi deposto em 1930. O deslanche industrial, sustentado pelo êxodo rural, criava uma classe operária concentrada nos arredores de Buenos Aires, em Córdoba e Rosário. A tradução política da “nova Argentina” surgiu com o coronel Juan Domingo Perón, ministro da Guerra e do Trabalho após o golpe de 1943, eleito presidente em 1946. O PJ e a CGT, central sindical peronista, foram os instrumentos do populismo corporativo.
Na “década de Perón”, que foi também a da primeira-dama Evita, as divisas geradas pelas exportações de alimentos para a Europa em guerra financiaram as reformas sociais e ajudaram a enquadrar a “massa inorgânica”. O Pampa continuava a amparar Buenos Aires, mesmo nos tempos da indústria. Mas esse já era o fim do sonho.
Perón foi deposto em 1955. A Europa reconstruída inventou seu sistema de subsídios agrícolas e as exportações do campo tornaram-se insuficientes para financiar o reformismo populista. O peronismo histórico exauriu-se. Perón voltou ao palácio nos braços do povo em 1973, mas a farsa durou pouco. Depois da sua morte, o poder passou, brevemente, para as mãos da segunda mulher, Isabelita.
Em seguida, o golpe militar inaugurou os anos de chumbo.
A indústria argentina com exceção dos setores do petróleo, alimentos, couro e lã sempre foi um enxerto frágil. Faltava ao país o mercado interno vasto e a mão-de-obra barata que conferiram dinamismo à indústria brasileira. O endividamento externo dos anos 70 representou um golpe profundo na base industrial da Argentina. A abertura econômica, iniciada pelos militares em 1977, deflagrou a desindustrialização. O modelo econômico e social peronista estava sendo dinamitado.
A redemocratização evidenciou a crise dos partidos tradicionais. O PJ, tido como imbatível, foi derrotado por Raúl Alfonsín, da UCR, em 1983. Mas Alfonsín renunciou seis meses antes do fim do mandato em meio à crise institucional causada pela hiperinflação, que ultrapassava, em bases anualizadas, os 3000%. A vitória eleitoral de Carlos Menem, do PJ, inaugurou o neo-peronismo, em versão ultra-liberal.
O poderoso ministro da Economia, Domingo avallo, funcionou como criador e mago da “pátria financeira”.
A Lei da Conversibilidade, que pregou o peso ao dólar, foi inventada para cauterizar a hiperinflação que amputou o final do mandato de Alfonsín. Mas o expediente transformou-se em programa político e congregou os dois partidos tradicionais.
No plano estratégico, o sistema de câmbio fixo funcionava como instrumento para separar a Argentina do Brasil, evitando que o Mercosul evoluísse rumo à unificação monetária. No plano econômico, o peso/dólar soldava a aliança entre a elite política argentina e as finanças internacionalizadas, às custas da ruína da indústria e da classe média do país.
Os bancos e as principais indústrias passaram ao controle de conglomerados internacionais. Os investimentos espanhóis principalmente a petrolífera Repsol, a Telefónica e os bancos Santander e BBVA comandaram a conversão econômica. Os industriais vendiam as suas empresas e associavam-se ao circo internacionalizado das finanças. Enquanto nos barrios periféricos a classe operária minguava e a pobreza se disseminava, a classe média protegia a sua poupança e o seu nível de vida atrás do escudo do peso/dólar.
Fernando de La Rúa, da UCR, eleito presidente após os dois mandatos de Menem, deu continuidade à política econômica de seu antecessor justicialista e logo tornou-se o administrador da catástrofe. O apego canino da elite argentina à “pátria financeira” acabou arrastando o país para a depressão econômica e, depois, para o colapso financeiro e a implosão institucional.
Em 2001, diante da aproximação da crise, De La Rúa chamou de volta Domingo Cavallo. O mago do peso/dólar, candidato à presidência derrotado nas urnas, foi alçado à condição de super-ministro, enquanto o presidente esvaia-se na irrelevância.
A implosão institucional atingiu as bases da democracia argentina. Eduardo Duhalde, conduzido à Casa Rosada pelos parlamentares dos dois grandes partidos e pelos governadores das províncias, também tinha sido rejeitado nas urnas, nas últimas eleições presidenciais. Junto com o sistema do peso/dólar, os pilares básicos de legitimidade política deixaram de existir, pois a vontade do povo não tem veículo para se expressar.
A Argentina está à deriva. A crise, em pleno desenvolvimento, paralisa o Mercosul . O furacão social ameaça varrer, definitivamente, os partidos tradicionais. Chegará, então, o momento de reinventar a nação.
Flutuação do peso não basta para impulsionar o Mercosul
O colapso do peso e o processo que ficou conhecido como “descolamento” a tese de que a economia brasileira deixou de sofrer impactos derivados da crise argentina – são dois aspectos de uma equação que continua sem solução: qual é a viabilidade estratégica do Mercosul?
Sejam quais forem as teorias dos diplomatas da região, o fato é que a Argentina, outrora vista como parceria estratégica numa política de resistência às pressões dos países industrializados do Norte, tornou-se afinal uma economia completamente fragilizada. É pura fantasia imaginar linhas de resistência à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), por exemplo, diante do fato objetivo de que o futuro da economia argentina está nas mãos de organismos financeiros internacionais controlados pelos governos dos países ricos, sob a liderança dos Estados Unidos da era Bush.
O grau de dificuldade do projeto do Mercosul pode ser atestado pela ousadia dos diplomatas brasileiros quando se trata de oferecer vantagens comerciais à Argentina capazes de, ao menos, manter as aparências de que ainda há um interesse regional comum. A proposta de eliminação total de barreiras tarifárias, por exemplo, segue esse modelo de dobrar a aposta no Mercosul, no momento em que o projeto se encontra em frangalhos.
A fragilidade financeira e fiscal, totalmente exposta no caso argentino, é menor mas também grave no Brasil. A Argentina se afunda na depressão econômica. No Brasil, a defesa da estabilidade da moeda impede taxas mais altas de crescimento econômico. Assim, a própria tese de que a dimensão dos mercados internos justifica a defesa da integração perde força: afinal, juntar o roto com o esfarrapado não basta para atrair investidores e abrir horizontes de desenvolvimento econômico.
Continua em pé a tese de que o Mercosul é, antes de mais nada, um projeto político, de duvidosa base econômica. Foi uma construção diplomática principalmente brasileira, sobretudo ao longo do governo Menem, quando os argentinos pautavam sua política externa pelo princípio das “relações carnais” com os Estados Unidos. Nos próximos meses, a Argentina estará em transição política e o Brasil viverá eleições presidenciais. Nesse momento não se pode avaliar os rumos que tomarão as políticas externas dos dois Estados, após a definição dos processos políticos em curso.
Os mais otimistas, principalmente entre os economistas, continuam acreditando no futuro do Mercosul. O fim do peso/dólar teria liberado o sistema cambial da Argentina, propiciando uma convergência com o sistema de flutuação relativamente livre adotado no Brasil. Essa seria a base para uma moeda comum que, a exemplo do euro, consolidasse o Mercosul como potência econômica regional.
Tecnicamente, é verdade. Imaginar dois países com sistemas cambiais diferentes compartilhando uma moeda é impossível. Desse ponto de vista, a crise do peso conversível é favorável à utopia de uma moeda do Mercosul. Mas como tanto o peso quanto o real continuam subordinados às políticas do FMI e aos interesses do Tesouro americano, parece que o futuro do Mercosul e das relações entre Brasil e Argentina dependerão cada vez mais do bom humor dos nossos parceiros do Norte.
Na Argentina, a receita do setor público equivale a menos de 20% do PIB nos últimos anos – contra mais que 30% no Chile e no Brasil e tende a cair em momentos de crise. Predominam os impostos indiretos, cuja arrecadação diminui com a desaceleração econômica. O Estado é frágil.
No Brasil, antes de desvalorizar o real, em janeiro de 1999, o governo ofereceu diversas formas de proteção aos investidores, bancos e grandes empresas. Primeiro, o Banco Central (BC) vendeu cerca de US$ 30 bilhões de suas reservas entre agosto e setembro, o que permitiu a saída ordenada e a baixo custo dos mais afoitos. Segundo, o Tesouro e o BC venderam cerca de US$ 60 bilhões de títulos indexados ao câmbio. Terceiro, o BC operou no mercado futuro no auge da crise, apostando no real, o que transferiu mais US$ 4 bilhões para quem queria se proteger da desvalorização iminente. Quando o real caiu, a maior parte da dívida externa do setor privado estava protegida, pois os devedores tinham trocado seus reais por dólares. Desse modo, os custos se transferiram, automaticamente, para o setor público. Ou seja, também aqui o Estado é frágil.
Essa fragilidade, quando aumenta, aparece imediatamente como pressão contra a moeda nacional. No ano passado, o Brasil efetivamente não foi atingido por um furacão, quando o peso caiu. Mas o real desvalorizou-se ao longo de todo o ano, apesar das taxas de juros extremamente elevadas e das intervenções diárias do governo vendendo dólares diretamente nos mercados.
Estados frágeis são um sinônimo de moedas frágeis – ou seja, moedas com baixo poder de compra nos mercados internacionais.
Isso se traduz em menos acesso de empresas localizadas no Brasil ou na Argentina a linhas de crédito, financiamento para investimentos e mesmo para exportações. O que significa pequena capacidade de sustentar concorrência com as empresas estrangeiras.
As economias do Brasil e, mais ainda, da Argentina, padecem de acesso restrito ao crédito externo. Os dois Estados são incapazes de extrair ainda mais receita internamente, através da cobrança de impostos ou da emissão de títulos. Nessas condições, o Brasil e a Argentina são, hoje, parceiros destituídos dos meios econômicos e políticos para consolidar um projeto de integração regional.
Boletim Mundo Ano 10 n° 1
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