Newton Carlos
Desembarquei em Buenos Aires em 1955, pela primeira vez, com a tarefa de cobrir a queda de Perón e levantar a veracidade da Carta Brandi, usada como denúncia de suposta vinculação de João Goulart com o peronismo e golpes sindicalistas. Descobri que era falsa e quase perdi o emprego de repórter na Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda.
Já no aeroporto senti o primeiro impacto. Clima de guerra. Soldados com os dedos nervosos nos gatilhos, formações de aviões de combate e controle minucioso, jeito bananeiro. Nas ruas, no entanto, gente bem vestida agitava lenços brancos. A “revolução libertadora” refletiu, em seus mínimos gestos, a vazão de sentimentos reprimidos de uma classe média que fora dominante nos anos de ouro, quando a Argentina chegou a ser a quarta economia do mundo sob uma “hegemonia burguesa”.
As presidências de Irigoyen, nos anos 10 e 20, representaram o esgotamento do poder oligárquico por força do voto “de qualidade”. No caminho do aeroporto para o centro, os bairros operários, conglomerados simétricos de concreto, pareciam cobertos de sombra.
A Argentina peronista se fingia de morta, depois de quase dez anos de ditadura populista que incorporaram os cinturões urbanos de “descamisados” ao perfil do país de classe média e hábitos europeus.
Favelas, ou “villas miséria”, quase inexistiam. Pelo menos não eram parte da paisagem visível. Certos cacoetes persistiam. Sei que fui espionado por empregados do hotel onde fiquei. Prédio canhoneado na avenida Corrientes lembrava aos passantes e aos que ficavam olhando as poucas marcas de brutalidade da “revolução libertadora”.
Ela se expressava mais por meio de sorrisos alveares de meia-idade, carregados de preconceitos anti-operários.
O único núcleo de resistência do peronismo foi o nacionalista, um dos pontos fortes do caráter argentino.
A idéia era recapturar a Argentina dos anos 10 e 20. Eu conheci o metrô em Buenos Aires e não em Paris. Aquela primeira visão direta – a Corrientes como a avenida que nunca dorme, as “confiterias” com seus espetáculos vespertinos, os restaurantes da Costanera, as casas noturnas de Olivos, o chique de Palermo, as livrarias umas atrás das outras, os jornais já na época com tiragens de 600 mil exemplares iria sustentar-se ao longo de várias visitas minhas à Argentina, onde tenho uma filha morando.
Era uma espécie de Dr. Jekyl e Mr. Hyde. Lembro nos anos 60 de mais uma turbulência, das tantas que sucederam à queda de Perón. Militares “vermelhos” ( nacionalistas) e “azuis” (liberais) trocaram tiros de canhão na praça Constituição, dentro de Buenos Aires, às portas de movimentada estação ferroviária. As “confiterias” continuaram tangando, cheias de gente que custou a despojar-se, e mesmo assim em parte, de seus trajes bem arrumados, diários, a qualquer hora. Me disseram que os argentinos de classe média gastavam a metade de seu salário em roupas.
Só nos últimos anos começaram a ser vistas mulheres de jeans na calle Florida. Lembro das argentinas que já saíam de casa, pela manhã, completamente equipadas. No Rio de Janeiro e em São Paulo seriam vistas como a caminho de alguma festa. Uma visita à feira de Santelmo era, e continua sendo, um encontro com objetos decorativos que inundavam as casas da burguesia. Show de bom gosto e opulência. No final dos anos 60 e começo dos 70, outra vez no caminho do aeroporto para o centro de Buenos Aires, percebi os primeiros sinais de aglomerações com caras de favelas, com um tipo de opressão ausente das do Rio o frio gelado.
Pedintes de ruas sempre existiram em Buenos Aires, como em qualquer grande cidade em qualquer parte do mundo. Mas eles só se tornaram parte da paisagem a partir dos anos 70, com presença constrangedora a partir dos anos 90. Era o “derrumbre”, encoberto pelas fantasisas da dolarização. Na posse de Carlos Menem fiquei olhando a avenida Corrientes. Já não pulsava como antes. Permaneciam os cafés onde se pode ler os jornais com um único chá, à la Paris, mas as “confiterias” elegantes, das tardes de júbilo, desapareceram.
Ao fundo, o Luna Park se mantinha como museu de grandes espetáculos de esporte e música. O Teatro Colón nunca deixou de ser referência no universo do canto, do balé e dos concertos. Ainda hoje, me contaram há meses, em minha última visita, artistas europeus com contrato para o Brasil, em geral, estendem as turnês ao Colón. Questão de currículo. Mas também fiquei sabendo que empresários brasileiros acabam bancando os recitais em Buenos Aires, diante da insolvência dos empresários argentinos.
Nessa visita mais recente, observei a crescente presença de jeans femininos nas ruas de Buenos Aires, especialmente na “calle” Florida. A classe média encharcada de cosméticos cede lugar a um “desformalismo”. Os restaurantes da Costanera continuam de portas abertas. Pelo que fui informado, estavam cheios na tumultuada passagem de ano, mas o hit do momento são os restaurantes de Puerto Madero, de linhas retas e coloridas, longe do corte parisiense da velha Buenos Aires.
Puerto Madero é produto de Georges Soros, o papa da globalização. Onde está a Buenos Aires que eu conheci? O amigo a quem perguntei me puxou pelo braço até a Recoleta, com seus cafés e casas de chá. Ao fundo, a construção recente de um shopping com cine marks.
Boletim Mundo Ano 10 n° 1
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