Índia apropria-se do discurso americano da “guerra ao terror” e exige que Paquistão reprima os separatistas muçulmanos da Cachemira
Enquanto o mundo assistia à intervenção americana no Afeganistão, perguntando-se sobre o paradeiro de Osama Bin Laden e do mulá Omar, alguns analistas preocupavam-se muito mais com a temperatura das relações entre dois países vizinhos, o Paquistão e a Índia. O temor era de que o ataque ao Afeganistão ameaçasse o frágil equilíbrio entre dois velhos rivais, protagonistas de meio século de conflitos .
Preocupação justificada. A Índia tem um bilhão de habitantes e o Paquistão, 120 milhões. Os dois são potências nucleares que, nos tempos da Guerra Fria, fizeram parte de um delicado equilíbrio estratégico regional, aliando-se respectivamente à União Soviética e à China. Mais: os dois países estiveram diretamente envolvidos na situação afegã pré-intervenção.
Foi nas madrassas (escolas religiosas) do Paquistão que o Taleban se formou, amamentado por gordas verbas americanas. O governo paquistanês apostou no Taleban como peão para restabelecer a paz entre os grupos islâmicos que combateram a invasão soviética no Afeganistão, entre 1979 e 1989. Por diversos anos, o Paquistão foi um dos três únicos governos a reconhecer o regime taleban (os outros dois eram a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos).
Sob inspiração paquistanesa, separatistas da Cachemira ajudaram a treinar o exército afegão do Taleban e também a Al Qaeda, a organização de Bin Laden. Em troca, o Taleban garantia que a pacificação do território afegão funcionasse como instrumento de consolidação da hegemonia paquistanesa sobre a área: uma cotovelada direta na Índia, que apoiara discretamente a ocupação soviética no Afeganistão.
De fato, círculos militares paquistaneses, as populações de etnia patan da fronteira e os guerrilheiros da Cachemira nunca abandonaram o Taleban. Mas o presidente do Paquistão, general Pervez Musharraf temendo o isolamento internacional, sem nenhuma disposição de enfrentar os Estados Unidos e buscando conseguir ajuda financeira ocidental migrou para uma posição de apoio aberto à deposição do Taleban.
Essa decisão custou caro para Musharraf, que teve de enfrentar protestos de militantes dos partidos islâmicos e também as iniciativas dos rebeldes da Cachemira. Em dezembro de 2001, por exemplo, quando Musharraf fazia de tudo para garantir a Washington que não apoiava o terror nem pretendia hostilizar a Índia, militantes fundamentalistas islâmicos atacaram a sede do Parlamento, em plena capital indiana, matando 16 pessoas.
Foi o suficiente para desencadear os habituais desfiles de mísseis na Índia, ameaças de guerra e escaramuças de fronteira na Cachemira. Musharraf protestou, mas assimilou o golpe. Prendeu centenas de fundamentalistas, colocou na ilegalidade dois grupos extremistas islâmicos e, num gesto diplomático desses que costuma impressionar a opinião pública, fez questão de cruzar o salão e cumprimentar o primeiro-ministro indiano Atal Bihari Vajpayee, durante uma reunião internacional.
A temperatura baixou e Washington deixou de acusar o Paquistão de dar guarida ao terror internacional.
A situação regional, porém, está bem longe de uma solução definitiva. A divisão do Punjab e da Cachemira continua, assim como os ataques de separatistas e escaramuças de fronteira. Não há, também, qualquer sinal de que Índia e Paquistão venham a congelar seus programas nucleares. É uma equação explosiva que continua garantindo à região o título de principal foco de instabilidade do pós- Guerra Fria.
A Cachemira tripartida
A Cachemira é uma região de 220 mil km2 situada no contato entre a Ásia Central muçulmana e os mundos indiano e chinês.
Seu território é acidentado, cortado por duas cadeias montanhosas paralelas de formação recente: o Hindu-Kush e o Himalaia. A maior parte da Cachemira está situada em cotas de 2 a 6 mil metros de altitude. Entre o Hindu-Kush e o Himalaia encontra-se o vale do rio Indo, que nasce nos planaltos tibetanos do sudoeste da China e atravessa quase toda a Cachemira, antes de penetrar no Paquistão. O Indo constitui o eixo vital da geografia e da economia paquistanesas. Seus principais afluentes, na margem esquerda, nascem na Cachemira indiana e a maior parte de seus cursos no Paquistão. As águas do Indo e as desses afluentes abastecem o maior perímetro irrigado do mundo, que é o núcleo geoeconômico do Paquistão.
A Cachemira abriga pouco mais de 10 milhões de habitantes e está dividida entre Índia, Paquistão e China .
A Cachemira indiana, com pouco mais de 100 mil km2 e cerca de 6,5 milhões de habitantes, corresponde a Jamu-Cachemira, único estado da Índia de maioria muçulmana. A parte indiana da Cachemira divide-se em três regiões culturais: o vale do rio Jhelum, núcleo histórico da Cachemira, onde se localiza a cidade de Srinagar (os muçulmanos sunitas são mais de 90% da população); a região de Jamu, nos contrafortes do Himalaia (habitada majoritariamente por hindus); a região de Ladakh, pouco povoada (maioria de tibetanos budistas).
A Cachemira paquistanesa, com cerca de 78 mil km2 e quase 3,5 milhões de habitantes, na sua maioria muçulmanos xitas, compreende duas regiões: os Territórios do Norte, onde vivem 600 mil pessoas, administrados diretamente pelo governo federal; o Azad Cachemir (Cachemira Livre), com população inferior a 3 milhões, região autônoma, administrada por um primeiro-ministro escolhido pelo seu parlamento (as finanças, relações exteriores e defesa são de responsabilidade exclusiva do governo central paquistanês).
A Cachemira chinesa foi, em parte, conquistada na guerra sino-indiana de 1962. Com 40 mil km2 e alguns milhares de habitantes, corresponde quase totalmente à área do Aksai-chin, ligado à região autônoma do Tibete.
Meio século de conflitos
As comunidades hindu e muçulmana foram, por décadas, aliadas históricas na luta contra o colonialismo britânico na Índia. O Partido do Congresso, poderosa força pró-independência, teve como principais dirigentes, até a década de 40, o hindu Jahawarlal Nehru e o muçulmano Mohamed Ali Jinnah.
Mas, às vésperas da independência e em meio a distúrbios constantes entre as duas comunidades, Jinnah acusou Nehru de monopolizar o comando do partido, de olho na construção de um Estado hinduísta, onde os muçulmanos seriam discriminados. A divisão entre os dirigentes anti-colonialistas e a astúcia britânica provocaram a partição da Índia.
Em 1947 nasceram dois Estados independentes: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, muçulmano.
Mohandas Ghandi, o patriarca da independência indiana, acertou em cheio nas suas trágicas previsões: a partição resultou em um banho de sangue.
O deslocamento de milhões de hindus, que habitavam o Paquistão, para o Punjab Ocidental, na Índia, e o simétrico deslocamento de outros tantos milhões de muçulmanos, que habitavam a Índia, para o Punjab Oriental, no Paquistão, deixaram centenas de milhares de vítimas fatais.
Além do Punjab, também a Cachemira, antigo domínio do marajá Hari Singh, foi dividida em 1947 . O Paquistão reivindica a reunificação da Cachemira, sob um governo representativo da maioria muçulmana. A Índia acusa o Paquistão de ocupar ilegalmente parte da região e de sustentar os movimentos armados separatistas. Por mais de 40 anos, sequer um veículo cruzou a fronteira entre as duas principais fatias da Cachemira.
Boletim Mundo Ano 10 n° 1
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