Newton Carlos
Um eleitor mexicano confessou, sem remorsos, que pela primeira vez na vida votou na direita. Foi um dos muitos milhões que decretaram a derrota do Partido Revolucionário Institucional (PRI), o Partido-Estado com origem na revolução de 1910, há 71 anos no poder, abrigo de uma burocracia corrupta e de políticos regidos por códigos mafiosos. Vicente Fox, embora candidato do Partido de Ação Nacional (PAN), de origem oligárquica, conseguiu impor-se como o anti-PRI, atraindo uma enxurrada de votos de todos os matizes, com o objetivo imediato e comum de derrubar o PRI.
O resto se discute depois, num outro México. Foi essa a idéia que determinou a migração para a candidatura Fox de intelectuais da esquerda e centro-esquerda, como Jorge Castañeda, que em 1994 trabalhou com Cuauhtémoc Cárdenas, do Partido Revolucionário Democrático (PRD). Por que Castañeda juntou-se a Fox, um “populista de direita”? Depois de fraudado nas eleições de 1988 e de eleger-se prefeito da Cidade do México, Cuauhtémoc, filho de Lázaro Cárdenas, o nacionalizador do petróleo nos anos 30, cuja efígie ainda hoje tira o sono dos americanos, não conseguiu reeditar-se, nem em 1994 e nem agora, como candidato em condições de enfrentar o PRI. Diz-se que por culpa de “modelos ultrapassados” das esquerdas.
Fox, porém, mostrou-se competente na construção de um movimento anti-PRI, ampla frente cuja abrangência resultou num saco de gatos. Única maneira, ao que parece, de derrotar o sistema dominante. Castañeda decidiu juntar-se a ele a partir de uma estratégia de alianças cujo objetivo é abrir “espaços nacionais”, na América Latina, a políticas alternativas ao neoliberalismo. Essa estratégia foi montada por um grupo “supranacional” de intelectuais e políticos. No México, segundo o raciocínio do grupo, a primeira tarefa consistia em ultrapassar o PRI.
Daí, a “estranha aliança” com Fox.
O Consenso de Buenos Aires, documento produzido pelo grupo, manda negociar programas “sem cair em utopias”. Fala da necessidade de “novos paradigmas”, que reabasteçam “os referenciais de esquerda e centro-esquerda” na América Latina. Condena tanto o “fundamentalismo do mercado” como o “desenvolvimento populista e protegido”. O ataque ao neoliberalismo é frontal: não gerou desenvolvimento, nem distribuiu riquezas; os países que se submeteram à lógica financeira internacional especulativa perderam a capacidade de governar-se soberanamente.
A disposição manifestada é de construir outros modelos, com Estados “atuantes” que consigam recursos, através inclusive de privatizações, “para atender aos mais pobres e impulsionar a iniciativa privada”.
Há todo um manual que rejeita o “nacional populismo”, a “estratégia semi-autárquica da substituição de importações e as finanças públicas inflacionárias de governos fracos e mentirosos”. Defende um “Estado forte e democratizado, em condições de democratizar a economia de mercado e enfrentar as desigualdades sociais”. Diz que é preciso fazer com que o centro se volte para a esquerda e não para a direita. Sentencia que a realização de uma alternativa democratizante ao neoliberalismo depende, em muitos países, da substituição da aliança entre centro e direita por uma aliança entre centro e esquerda. Garante que existe um centro que precisa dessa aliança, composto por partidos que expressam a inconformidade da classe média “com a submissão colonial e o domínio oligárquico na América Latina”.
Qual é a esquerda que precisa e pode participar dessa aliança? A que rejeita “os resíduos do antigo nacional-populismo e deixou de ser refém de setores corporativos, os quadros relativamente privilegiados do Estado e das empresas públicas”. O centro precisa encontrar maneiras “de tornar politicamente fecunda a inconformidade da classe média” e a esquerda “precisa distinguir a causa popular e democrática dos interesses corporativos”. O ponto comum e essencial “é o compromisso de reconstruir e financiar um Estado forte, que sustente o projeto rebelde de desenvolvimento nacional” e enfrente as desigualdades sociais. Essas idéias projetaram-se num conjunto de documentos produzidos pelas reuniões de busca de uma alternativa latino-americana ao neoliberalismo.
Uma das premissas é a de que não existe contradição entre uma economia democratizada de mercado e um Estado “forte e enriquecido, capaz de investir em gente e ser parceiro da iniciativa privada, sobretudo das pequenas e médias empresas”. Também “tomamos como nossa a causa da estabilidade monetária”, mas uma estabilidade “reorientada”. É preciso libertá-la “da dependência dos expedientes custosos do câmbio sobrevalorizado, juros altos e arrocho salarial e refundá-la , com ajuste fiscal enriquecedor do Estado”. O discurso convencional do “ajuste fiscal” supõe erradamente “que se possa consolidar a estabilidade à base do empobrecimento do Estado”. Os “ajustes fiscais enriquecedores” podem precisar de “saneamento patrimonial”, o que justificaria privatizações.
A vitória de Fox abriria o primeiro “espaço nacional” a essas idéias, que já repercutem no Brasil e na Argentina.
Mas Fox estará à altura dos anseios dos que se juntaram, independente de credos e ideologias, de direita e esquerda, ungidos pela convicção de que, antes de tudo, era preciso somar forças e derrotar o sistema dominante?
É a pergunta que fica.
Boletim Mundo Ano 8 n° 5
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