Omar Ribeiro Thomaz
As imagens que, em geral, são reproduzidas sobre a “África” dizem respeito, quase sempre, a um território marcado pela aventura e pelo perigo. Em geral, não se pensa na África como um continente que como a Europa, Ásia ou América possui uma imensa diversidade interna que se expressa na organização social, nas estruturas políticas e nas manifestações culturais. Se é fato que pelo menos parte do continente foi duramente castigada por anos de tráfico negreiro, pela escravidão e pelo colonialismo ao longo de séculos, também é verdade que, na atualidade, as pessoas que lá vivem procuram construir um cotidiano agradável, apesar de todas as adversidades.
Temos muito o que aprender com a África.
Um bom começo é uma viagem pelo interior de algum país, procurando se afastar das capitais. Não que estas não sejam interessantes: os meses que passei em Maputo, capital de Moçambique, foram fantásticos. Fiz bons amigos, a vida cultural é agitada e há muito para se conhecer. No entanto, ocorre em Maputo aquilo que podemos observar em outras grandes capitais os indivíduos já estão mais ou menos acostumados com o visitante estrangeiro, o que, às vezes, o impede de viver o inesperado.
Uma viagem pelo interior do país é outra coisa. Pouco habituados aos turistas, os moçambicanos se orgulham do país que procuram reconstruir após quase três décadas de guerra primeiro contra os portugueses, depois a guerra de agressão movida pelos regimes racistas da Rodésia e África do Sul, que acabou se transformando numa guerra civil. Desde 1992, centenas de milhares de pessoas voltaram para as suas terras, com o objetivo de retomar o culto aos seus antepassados e, evidentemente, as lavouras, pois a agricultura é a base da economia do país.
O maximbombo (ônibus) é o transporte usual: nele temos ainda a oportunidade de conhecer pessoas, pois, às vezes, vários dias separam as regiões de Moçambique de sua capital, e os moçambicanos são muito comunicativos.
Pouco acostumados a estrangeiros no transporte popular, logo se voltam para você, perguntam de onde é, e tem início uma viagem marcada, sobretudo, por muita camaradagem.
O maximbombo em geral tem música, que o acompanhará por toda a viagem. No meu caso, parti de Maputo, no sul, em direção a Vila Manica, na região central, pequeno vilarejo junto à fronteira com o Zimbábue.
A alegria das pessoas contrasta, por vezes, com a paisagem, que anuncia a desolação da guerra. Cada uma das pessoas tem uma história para contar. Todas sofreram as barbaridades da guerra, para não falar das arbitrariedades do período colonial. Evidentemente a paisagem é também bonita: pode-se observar o verde das pradarias, fruto dos anos de chuva que sucederam o acordo de paz. A volta das chuvas foi interpretada pelo grosso da população como uma conseqüência direta do acordo de paz, da abertura política e democratização.
Chegamos à uma da madrugada em Vilanculos, onde o maximbombo parou e todos tivemos de descer.
Mulheres e homens estenderam suas capulanas (esteiras) na beira da estrada e dormiram. Eu me deitei no chão e descansei a cabeça na minha bolsa. Antes de pegar no sono, escutei um grupo de jovens que eram meus companheiros de viagem discutindo sobre o passado e o futuro de Moçambique.
Não se devia haver corrido com os portugueses... tudo parou nos tempos do Samora... Olhe lá o Zimbábue, não correram com os ingleses, olha lá o Mandela, não correu com os bôers, e a economia não parou... cá a economia parou... Agora os portugueses estão a voltar, isto é bom, tudo vai voltar a funcionar.
Na manhã seguinte, o maximbombo lançou-se ao pior trecho da viagem às cinco e meia da manhã. Sentia-me mal e me dei conta de que não havia comido nada o dia inteiro! Na primeira parada me ofereceram carne de gazela com batatas, que comi com gosto e repeti. Agüentei com coragem o sacolejo no trecho da estrada que foi o mais atingido pela guerra: com mato cerrado nos dois lados, numa paisagem algo semelhante à do Brasil Central, enfrentamos horas de uma estrada absolutamente esburacada pelas minas do período da guerra (ainda há cerca de três milhões de minas em Moçambique e, acredita-se, morrem por volta de 300 pessoas por ano, vítimas dessas terríveis armadilhas escondidas).
Chegamos a Chimoio, capital de Manica, às quatro da tarde, onde me esperava o Peter. Chimoio está bem cuidado e parece que, por fazer parte do corredor ferroviário que liga o Zimbábue com a Beira, não sofreu muito com a guerra. Mas a cidade recebeu centenas de refugiados e a sua população sofreu as arbitrariedades das tropas da Frelimo e das forças do Zimbábue (a antiga Rodésia, com governo da maioria negra desde 1980) que colaboravam na luta contra a Renamo.
O meu primeiro dia com o Peter foi curioso. Fomos visitar um feiticeiro de nome Abraão, de origem muçulmana, mas que recebe o Espírito Santo e fala em nome de Jesus, receitando curas e milagres. Sua casa é decorada de forma assustadora, com relógios horríveis na parede que tocam musiquinhas a cada hora e uma televisão ligada ao gerador de um carro. Sentamo-nos na sua sala e Abraão recebeu a sua clientela que, aparentemente, não se incomodava o mínimo com a nossa presença ou com o barulho da TV.
Antes, havíamos ido visitar o pai de Abraão, junto com seu irmão, numa machamba (área de cultivo agrícola) próxima. O pai é maometano e veio de Zanzibar, mas também tem relações com espíritos. Conversamos sobre os tempos de baba Samora. O irmão de Abraão nos falou da Sinaspe, polícia política treinada pelos russos e que, segundo ele, era pior que a Pide, a antiga polícia política portuguesa.
Boletim Mundo Ano 8 n° 3
Nenhum comentário:
Postar um comentário