quinta-feira, 3 de março de 2011

UM CONTINENTE ABANDONADO

Quatro golpes de Estado em um ano expõem os limites Jean-Pierre Olivier de Sardan* da “democratização” africana.
Jean-Pierre Olivier de Sardan
A recente destituição do presidente Henri Konan Bédié pelos militares da Costa do Marfim lembra, mais uma vez, que um golpe de Estado é geralmente conseqüência, certamente lamentável, de graves obstáculos institucionais, de impasses políticos, da ilegitimidade dos dirigentes, do fracasso de processos de sucessão, da falência das elites, e, mais intensamente, da má administração e de um serviço público arruinado.
Todos estes fenômenos são particularmente acentuados em países onde, recentemente, aconteceram golpes de Estado (Nigéria, Serra Leoa, Camarões, e Costa do Marfim, somente em 1999), mas estão presentes também, em grande escala, no conjunto de países oficialmente “democráticos”.
A crise é, antes de mais nada, institucional: a “democratização” gerou o pluripartidarismo e uma certa liberdade de imprensa, mas não o princípio fundamental de alternância do poder. O Benin é hoje o único exemplo, admirável, de sucessão verdadeira através das urnas. Uma vez no poder, um presidente (às vezes um antigo ditador vagamente convertido, às vezes um respeitável “democrata” festejado pela sociedade internacional) não pretende, de maneira alguma, perdê-lo nas urnas. Suas tropas farão o necessário para mantê-lo. A fraude eleitoral é grosseiramente praticada na maior parte do país  antes, durante ou depois das eleições.
Podemos até mesmo dizer que a única mudança entre o pluripartidarismo atual e o antigo sistema de partido único, é que existem hoje, em cada país, vários partidos que se comportam como um único partido.
A rivalidade entre os partidos gira em torno de plataformas eleitorais baseadas em deploráveis propostas de reforma. Com certeza as margens de manobra econômicas são frágeis: o ajuste estrutural foi imposto, assim como a privatização das empresas públicas.
Além do mais, o peso da dívida, o custo da matéria-prima e a dependência dos investidores são impedimentos consideráveis.
Os países ocidentais têm sua parte de responsabilidade, e a crise é, também, de colaboração. Sabemos que as piores torpezas das elites no poder, depois da independência, foram amavelmente avalizadas pelos dois campos, dentro do contexto da Guerra Fria. Que nos anos 70, marcados pela expansão econômica, foram concedidas facilidades de crédito delirantes, ao mesmo tempo em que a África tornava-se um cemitério de elefantes brancos de todos os tipos, dos quais inúmeras empresas do Norte aproveitaram bastante. O afastamento crescente dos países ocidentais agravou os efeitos combinados, já brutais, da crise e dos ajustes estruturais.
Uma cultura de corrupção
As formas africanas de corrupção são caracterizadas por sua visibilidade e generalização.
As empresas ocidentais contribuíram enormemente para o desenvolvimento de fenômenos de corrupção na África. Com certeza, a “grande corrupção” praticada nos altos escalões do Estado não tem nada a ver com esta “pequena corrupção” de policiais, funcionários públicos, enfermeiros, perfeitamente familiar ao mais comum dos mortais.
Mas, acima de tudo, o fenômeno tornou-se, na quase totalidade dos países africanos, um elemento de rotina do funcionamento dos órgãos administrativos, do topo à base. Os únicos serviços confiáveis prestados pelos funcionários aos usuários o são, agora, a título privado (favores ou corrupção).
A organização clientelista também participa desta super capitalização: toda pessoa com acesso aos recursos (comerciante, funcionário promovido ou em missão, coordenador político, etc.) é necessariamente chamado a redistribuir uma parcela, não apenas para sua família, mas também para seus vários dependentes. A própria democracia eleitoral gira em torno deste mecanismo, uma vez que os votos são sistematicamente comprados em toda a África e que os partidos são obrigados a conduzir suas campanhas distribuindo dinheiro.
Por outro lado, a troca, a prestação de serviços entre administração e usuário, acontece por meio de um sistema de relações pessoais particularmente desenvolvido  e exigente. A rede de sociabilidade na África, em particular nas cidades, extrapola amplamente o limite da família, que é, porém, bastante amplo, e onde as pressões e solicitações não se deixam esquecer. As relações de camaradagem, de vizinhança, de “ascensão”, trabalho, partidos, igreja, associações proporcionam um capital de relações sociais, que implica numa obrigação moral de assistência mútua. O grupo com o qual temos obrigações e para o qual podemos pedir ajuda é, então, consideravelmente grande.
O setor da saúde é o exemplo típico desta ruína. Somente os privilegiados têm proteção social e acesso a um mínimo de assistência de qualidade. A grande maioria da população tem acesso apenas ao atendimento pago e de má qualidade.
O quadro da educação, cada dia mais decadente, do primário ao superior, não se encontra em melhor situação. Muito menos a Justiça, desacreditada por sua venalidade e submissão às ordens do poder. Nenhuma das funções  básicas de um governo são realmente exercidas na África. Nenhum dos serviços que um Estado deve prestar a seus cidadãos lhes é minimamente garantido.
Os milhões de mortos que, após uma quinzena de anos, são a conseqüência, em última análise, da deterioração do Estado nos países atormentados pelas guerras civis, assim como a intensidade das nuvens que se acumulam sobre os países ainda em paz, deveriam provocar essas verdadeiras reformas.
Boletim Mundo Ano 8 n° 3

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