Maria Bárbara Castelo Branco de Almeida
Sessenta e dois mil anos depois de os mais antigos representantes da espécie humana nas Américas, descobri o Piauí. Foi no sertão do estado mais pobre do país que, em 1963, a arqueóloga Niéde Guidon achou um tesouro perdido: os sítios que deram origem ao Parque Nacional Serra da Capivara (Parna). Considerado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, o Parna concentra o maior número de sítios pré-históricos das Américas.
O parque, pouco maior do que a cidade do Rio de Janeiro, ocupa 130 mil hectares no sudeste do Piauí. Engloba os municípios de João Costa, Coronel José Dias, Canto do Buriti e São Raimundo Nonato, onde fica a sede.
A 530 km de Teresina, a maneira mais fácil de chegar em São Raimundo Nonato é por Petrolina, cidade pernambucana às margens do rio São Francisco. São Raimundo Nonato abriga também o Museu do Homem Americano. O museu reúne informações sobre todos os aspectos do parque e do trabalho nele realizado, ocupa um espaço pequeno e pode ser visitado em apenas uma hora. Há uma sala dedicada aos objetos encontrados durante as escavações.
Depois de percorrer um pequeno trecho da BR-20, rodovia que atravessa uma ponta do parque, dá-se com uma planície interminável, coberta de mata seca e árvores quase sem folhas, de troncos retorcidos uma paisagem árida e descolorida. Rumando para a entrada do parque, de repente avista-se um relevo mais alto. São rochas em forma de cuestas e cânions, resultado da ação erosiva, que conferem beleza surpreendente à paisagem.
As trilhas levam a sítios com inscrição em rochas e cavernas ou a pontos privilegiados de observação. O turista mais aventureiro diverte-se nas trilhas mais íngremes até o alto das rochas, de onde se vê o pôr-do-sol colorir a espetacular cena das andorinhas recolhendo-se às cavernas.
A maioria prefere a caminhada mais leve, até o primeiro sítio, onde se depara com as inscrições rupestres.
Em um simples pedaço de rocha, quantas histórias eram contadas pelos nossos antepassados!
“Cada um que vê tem uma interpretação diferente”, dizem os guias da Fundação do Homem Americano.
Cenas de caçadas, de sexo e até a dança da bundinha atravessaram o tempo. Notícias das marcas deixadas pelo homem pré-histórico na região atraíram os cientistas, que acabaram descobrindo um dos mais importantes arquivos sobre a humanidade.
O impulso decisivo para a formação do parque foi dado em 1975, por uma missão franco-brasileira que visitava o Piauí. Graças aos esforços dessa missão junto ao governo, em julho de 1979 criou-se o parque. Na primeira década de existência, tudo ficou abandonado, por falta de recursos. A caça sistemática a capivaras e tamanduás bandeira provocou a proliferação de cupins, que atacaram as rochas, afetando as inscrições. Com auxílio da iniciativa privada, a equipe de pesquisadores da missão franco-brasileira criou a Fundação do Homem Americano.
Mas só em 1994 seria assinado convênio com o Ibama, ambos assumindo a gestão do parque. Um dos resultados foi a formação de agentes de conservação, através de cursos oferecidos à população local.
Os cientistas descobriram sítios com datas entre 50 mil e 60 mil anos, que podem revolucionar o estudo do povoamento das Américas. No sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, as escavações duraram dez anos e foram descobertos os artefatos mais antigos das Américas: fogueiras estruturadas e uma grande quantidade de objetos de pedra lascada. Encontrou-se até uma machadinha de 9.200 anos, primeiro artefato americano de pedra polida.
Houve muitas outras descobertas importantes. Na área da paleonparasitologia, graças à técnica da biologia molecular, descobriu-se a existência, na população pré-histórica (7 230 anos), de uma verminose originária dos antepassados pré-hominídeos que transferiram-se da África para a Eurásia e depois vieram para a América. Essa verminose, transmitida pelas fezes, não resiste a temperaturas abaixo de 23ºC, tornando impossível sua difusão através do contingente migratório que teria vindo pelo gelado estreito de Behring. A descoberta poderia contribuir para provar que técnicas de navegação já eram conhecidas por populações asiáticas há mais de 7 000 anos.
Toda essa riqueza já foi muito prejudicada ao longo da história. A colonização, a extração da maniçoba e a pecuária extensiva, somadas às secas constantes, prejudicaram a fauna e a flora regionais, que na Pré-História teriam sido abundantes. Com os recursos naturais limitados pela seca, o turismo cultural e o ecológico representam a única alternativa de desenvolvimento para a região.
Boletim Mundo Ano 8 n° 2
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