João Bosco Feres e Anneke Jansen
Depois de 25 anos de guerra, tudo em Angola é informal. Da cotação do dólar à alfabetização de crianças.
Depois de 25 anos de guerra, Angola – que já foi um dos países mais ricos da África (tem grandes reservas de petróleo e diamantes) – é hoje a terra da informalidade, onde a vida de quase todos limita-se a dar um jeitinho “informal” de sobreviver (os pobres), ou de enriquecer “informalmente” ainda mais (os ricos).
Essa informalidade começa pela própria guerra. Uma grande ofensiva das forças governamentais, no final do ano, quase dizimou a guerrilha da Unita, que deixou 85% de seu armamento espalhado pelas estradas. Mas a Unita minou as estradas, aumentando o enorme contingente de sem-pernas e sem-braços, civis que pisam nos explosivos. Cá e lá surgem bandos armados que saqueiam e matam. Serão guerrilheiros da Unita, que se mantêm graças à exploração de minas de diamante nas zonas sob seu controle? Ex-soldados do governo do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), que se nutre da exploração de petróleo por multinacionais?
Bandidos “informais”? Ninguém sabe. É parte da informalidade angolana.
O número de refugiados de guerra continua a crescer, as cidades incham e os serviços públicos tornam-se dramaticamente deficientes. Há bairros em Luanda sem água e luz há mais de três meses. A cidade inteira produz um ruído desagradável e constante de geradores trabalhando 24 horas por dia. A venda de água por caminhões-tanque tornou-se um dos negócios mais rendosos.
Tudo é transportado por aviões de modo irregular, o que alimenta visivelmente o clima de desesperança da população. A guerra acabou virando uma coisa difusa, que não mobiliza a opinião pública e afeta (além dos civis apanhados no meio do tiroteio) principalmente os militares de carreira e os jovens pegos a laço pelo alistamento. Eles são capturados em operações pente fino, especialmente nos bairros populares. Daí são transportados para áreas bem distantes, de modo a impedir deserções. Uma situação que pode eternizar-se por mais uns 20 anos.
Cerca de 85% da população vive da chamada “economia informal”. Dependem de relações e esquemas que lhes garantem as mercadorias necessárias para comprar, contrabandear ou receptar. Todo o dinheiro que circula no país passa antes pelo mercado negro. Praticamente ninguém paga imposto. O cidadão pode procurar o quanto quiser um guichê para pagar imposto, que não vai encontrar. No máximo, topará com algum funcionário vivaldino que descobriu um modo de aumentar seus parcos rendimentos e fundou um guichê pessoal.
O dólar é cotado no mercado informal. O mercado Roque Santeiro – título de uma novela da Globo que fez muito sucesso por aqui – no bairro Sambizanga, na capital, é o centro dessa bolsa de valores. Os bancos oficiais seguem essa cotação.
Não há dinheiro para melhorar os salários dos professores das inúmeras escolas que muitas comunidades construíram nos últimos anos (com materiais locais, é claro). O governo paga aos professores um salário mensal inferior a sete dólares, o que não chega para cobrir a condução dos mestres por mais de cinco dias.
Por isso, os professores se tornam muito criativos na arte de tirar dinheiro dos país. Alguns vendem até reservas de lugares nas salas de aula. Todos vendem papel timbrado para provas e exercícios. A própria escola pública tornou-se inacessível para a grande massa dos pobres.
As soluções informais estão na ordem do dia. Estima-se que mais da metade das crianças dos bairros pobres de Luanda aprendam a ler e escrever no circuito informal. Elas freqüentam um “explicador”, os novos franco-atiradores do setor que se instalam nas ruas ou em algum local improvisado.
O governo informalmente já avisou que vai realizar eleições em 2001. O coro de democratas de plantão, da comunidade internacional, está felicíssimo. Essa turma adora eleições e continua acreditando que basta votar para realizar a democracia.
Mas a sociedade civil angolana, com seus 10% de pilotos de BMWs e Mercedes Benz, tornou-se um pântano. Multiplicam-se os assaltos, as ruas são altamente inseguras e a contravenção virou hábito nacional, do qual participam ativamente os policiais, os inúmeros guardas particulares e a população.
Os norte-americanos são hoje os maiores investidores na “construção da democracia” em Angola e também os maiores clientes do petróleo angolano. Organizam quase que semanalmente seminários sobre “lobby político” e os cursos de inglês andam em voga. São cursos em que os jovens angolanos aprendem as boas maneiras de nosso tempo. Incorporam termos como “checks-and-balances”, “accountability”e “good governance”, senhas de entrada nas recepções e passeios de iate da high society.
Exatamente como fizeram seus pais e avós, no tempo em que os portugueses lhes ensinaram a comer com garfo e faca, usar sapatos e dormir em camas, a fim de terem acesso à carteira de identidade colonial com o honroso título de “assimilados”.
Coisa feia, sim. Mas trazia vantagens: dava um dinheirinho a mais e o cidadão deixava de ser “coisa”, a mercê do furioso arbítrio dos brancos. Tempo que passa e não passa...
Boletim Mundo Ano 8 n° 5
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