Lourival Sant’Anna
“Você quer mesmo ir ao Afeganistão?” Iqbal Afridi, meu intérprete afegão, fez essa pergunta quando saíamos da embaixada do Taleban em Islamabad, na manhã do dia 19 de setembro de 2001. O pedido de visto era um ritual inútil, ao qual se submetiam todos os enviados especiais que chegavam ao Paquistão, pois o Taleban suspendera a concessão de vistos de entrada ao Afeganistão após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos.
“Quero muito”, respondi, com a ênfase máxima na voz. “Eu posso te levar até lá”, garantiu Iqbal.
“Sou de lá.” Nos dias seguintes, examinamos várias possibilidades. Chegamos a tentar, por três vezes, sem sucesso, entrar pelo histórico Khyber Pass, o posto na fronteira noroeste por onde passa a Estrada de Cabul. No século XIX, o Khyber Pass desempenhou papéis cruciais nas disputas entre britânicos e russos pelo controle da cobiçada Ásia Central.
Nesse meio tempo, eu ia deixando crescer a barba e tentava cultivar um certo ar afegão. Na noite do dia 29, um sábado, estávamos sentados à mesa de um bar ao ar livre no centro de Islamabad, quando Iqbal teve um estalo. Lembrou-se dos velhos laços de amizade que o uniam a uma influente família na província paquistanesa do Baluquestão, que faz fronteira com o sul do Afeganistão. De manhã, embarcamos para Quetta, a capital do Baluquestão.
Abdul Sattar, o mais novo da família Achakzaí, foi nos buscar no aeroporto e nos conduziu a Chaman, na fronteira, a 120 quilômetros de Quetta, onde ele tem um negócio de importação e exportação. No início da tarde de domingo, fizemos a primeira tentativa de passar para o lado afegão. O miliciano encarregado de conferir os papéis dos que tentavam passar me perguntou alguma coisa em pashto, a língua falada pelos afegãos e paquistaneses na região. Logo percebeu que eu era estrangeiro e bloqueou minha passagem.
Na manhã seguinte, levamos reforços: além de Abdul Sattar, outros dois comerciantes, que faziam negócios com os dirigentes taleban. Mesmo assim, o guarda se mostrava irredutível: “Por que vocês insistem em trazer esse punjabi aqui?”, perguntou, supondo que eu fosse da etnia majoritária na costa leste do Paquistão. Aí, Iqbal perdeu a paciência, mandou chamar o comandante da guarda e entabulou com ele uma conversa particular, na qual enfatizou a influência de sua família na região. Deu certo e eu, finalmente, pude entrar.
Naquele dia, os jornais publicaram uma ordem emitida pelo governo taleban à população: “Se virem um estrangeiro, não perguntem nada: matem”. Minha teoria era a de que eu devia encontrar os taleban antes que eles me encontrassem. Com base nela, fomos direto para a cabana onde se reunia a cúpula dos taleban em Spin Buldak – um grande bazar da sucata de duas décadas de guerras, 105 quilômetros ao sul de Kandahar, o quartel-general do regime.
Colhidos de surpresa, e diante do pedido dos homens com quem faziam negócios, os quatro dirigentes taleban – um dos quais, Gul Agha, mudaria de lado e se tornaria governador da província de Kandahar, no regime formado após a queda do Taleban – concordaram em me dar uma entrevista. A condição era irmos embora em seguida.
Depois da entrevista, ainda fomos dar uma volta pelo sul. Horas mais tarde, meus guias disseram que era arriscado demais continuar. Saí do Afeganistão com mais do que podia ter ambicionado: uma entrevista com os taleban e uma pequena amostra do que era a vida no país que governavam, naqueles dias de tensa espera.
Boletim Mundo Ano 10 n°1
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