Multiplicação de conflitos e fracasso de governos “progressistas” aumentam o pesadelo na África Subsaariana.
Newton Carlos
As populações não confundem, de modo algum, a subalimentação ou a má nutrição de que sofrem permanentemente, ou durante longos períodos, com a fome, que elas temem como uma catástrofe e que, muitas vezes, provoca movimentos de êxodo ou de pânico.
Fome é gente morrendo em grande número ao longo das estradas, e os que ainda não morreram sem forças sequer para enterrá-los. (...) Ora, é importante constatar que os períodos atuais de fome e os que ocorreram nos últimos quinze anos se localizam nos países do Terceiro Mundo onde a extensão das atividades resultantes do sistema capitalista é ainda particularmente reduzida. É o caso dos países do Sahel: as terras permaneceram basicamente coletivas, as culturas de exportação quase não se desenvolveram e vastas regiões estão ainda nas mãos de pastores. Na Etiópia, não são as regiões cafeeiras que são atingidas pela fome, mas as regiões semi-áridas de agricultura tradicional.
(Yves Lacoste, Contra os antiterceiro-mundistas e contra certos terceiro-mundistas, São Paulo, Ática, 1991, p. 41-46)
Quando Yoweri Museveni entrou triunfalmente na capital de Uganda, em janeiro de 1986, historiadores foram unânimes em dizer que se abria nova era na África negra. Hoje se perguntam se isso seria verdade. A África tornou-se, mais do que em qualquer outra época do pós-guerra, um espetáculo sinistro de violência, degradação, miséria e doenças . Parece morrer lentamente. Na guerra do Congo (o antigo Zaire), por exemplo, estão envolvidos exércitos de seis países, todos paupérrimos. São as guerras dos farrapos.
Caso de Angola, onde existem quase dois milhões de refugiados, gente forçada a abandonar suas aldeias e casas, vítimas de uma guerra civil de mais de um quarto de século e aparentemente interminável. Investigação da ONU acaba de constatar a presença no conflito, em apoio aos rebeldes, de negócios milionários com diamantes. Há a expectativa de que a África do Sul, com o presidente Thabo Mbeki, sucessor de Nelson Mandela, consiga atuar como poder regional e ajude a encontrar meios de estabilidade que revertam a marcha africana rumo ao abismo. São meras esperanças num quadro carregado de frustrações.
O que se passou com Museveni, de Uganda, é emblemático. Não se tratou de mais um general entre tantos que assaltaram o poder em países africanos submetidos à proliferação de ditaduras fardadas. O dirigente ugandense, quando entrou em palácio, portava credenciais de intelectual. Formou-se na universidade da Tanzânia, à sombra de Julius Nyerere, um dos patriarcas do nacionalismo na África, a marca mais forte das lutas de independência.
Na mesma linhagem estava Kwame Nkrumah, o construtor de Gana como nação e uma das
cabeças do “socialismo africano”.
Museveni alcançou o poder com o país ainda dilacerado pela brutalidade grotesca do ditador Idi Amin. Era um guerrilheiro e um socialista, tido na época com um dos últimos cavaleiros errantes da descolonização. Mas a pequena Uganda virou em pouco tempo, sob a liderança de Museveni – hoje um ditador como outro qualquer, mais um experimento do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.
O mesmo caminho tomariam depois a Eritréia, a Etiópia e Ruanda pós-genocídio.
Paul Kagame, homem forte de Ruanda, tornou-se uma das estrelas dos novos tempos. Em março houve eleições no Senegal. A vitória de Abdoulaye Wade acabou com 40 anos de permanência ininterrupta no poder do Partido Socialista, criado por Léopold Sédar Senghor, o líder da independência. Wade ganhou prometendo “sopi”, transformações de fundo. É um novo modelo, o do neoliberal africano. O recente golpe militar na Costa do Marfim liquidou o mito da “estabilidade” no país e foi talvez o derradeiro golpe numa elite nativa predatória que tomou o lugar dos colonizadores brancos. A Costa do Marfim tem uma réplica do Palácio de Versalhes e sua primeira-dama por mais de 30 anos ficou conhecida com a Grace Kelly africana, tais seus hábitos de princesa.
Ex-socialistas
Finalmente, Laurent Kabila, outro ex-guerrilheiro, com raízes socialistas, acabou com a ditadura “ultrapassada” do zairense Mobutu, um dos heróis do anticomunismo, que acumulou fortuna estimada em US$ 9 bilhões. Tinha a proteção da Guerra Fria, escudo sob o qual proliferaram o golpismo, a corrupção e o barbarismo político. Mobutu, ex-sargento do exército da Bélgica, a antiga metrópole colonial, alcançou o topo passando por cima do cadáver de Patrice Lumumba, o herói nacionalista assassinado em complô no qual estavam os serviços secretos ocidentais.
Kabila seria a revanche. Mas também acabou se tornando outro reles ditador e a nova República Democrática do Congo é hoje administrada por tecnocratas saídos de universidades ocidentais, embora com a pretensão de formar com Uganda a linha de frente de uma nova onda das “guerras de libertação”. O fato é que na África não se fala mais em revolução ou socialismo. As palavras de ordem passaram a ser livre mercado e iniciativa privada. Por incrível que pareça, a África negra aparece em “avaliações estratégicas” como um mercado emergente talvez em condições de assumir proporções de um super market futuro.
Espécie de renascimento ajustado à globalização.
Só a África possui massas rurais em vias de urbanização e espaços físicos para suportar desenvolvimento com baixo custo em mão-de-obra e ecossistemas. Não se insiste tanto em democracia, mas em good governance, bom governo, à base de eficiência e disciplina, não direitos humanos. Museveni, Kagame e Kabila, embora ditadores, foram destaques no palanque de Bill Clinton, quando o presidente americano fez extensa viagem à África. Na agenda, o Africa Growth and Opportunity Act, aprovado pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, uma lei de liberalização de mercado destinada a incrementar negócios com países africanos.
Os Estados Unidos tratam de formalizar suas relações com governos africanos, “com a bandeira do capitalismo no lugar dos velhos sonhos revolucionários e socialistas”, escreveu um jornal europeu. Saem a Europa e a Guerra Fria, entram os Estados Unidos e a globalização.
Tudo isso numa geografia de guerras e um vespeiro de etnias em estado avançado de combustão.
Pegam fogo Serra Leoa, Guiné-Bissau, Nigéria, Sudão, Angola, Etiópia, Eritréia, Somália, Ruanda, Burundi e, de novo, a República Democrática do Congo. Rebelaram-se contra seu ex-herói os milicianos banyamulenges, ramo da etnia tutsi com presença bicentenária no país, espinha dorsal das forças de Kabila que derrotaram Mobutu.
Sonhavam com privilégios, mas Kabila preferiu a sua gente, originária da província mineral de Katanga, embora falando da impossibilidade de tratamento especial num universo de 300 etnias. Tutsis e hutus de Ruanda foram para o Congo nos anos 20 e 30, mão-de-obra barata explorada pelos colonizadores belgas, para trabalhar na lavoura e em mineração.
Juntaram-se aos de língua ruandense descendentes de imigrantes anteriores à época colonial, ainda hoje tratados como estrangeiros. Foram aliados de Mobutu, que incentivava rivalidades em benefício próprio. Nesse quadro de conflitos étnicos, explodiu em 1990 a guerra civil de Ruanda, origem do genocídio de 1994. Um milhão de hutus, expulsos do poder, se refugiaram no Congo com a pretensão de construir império próprio. É o vespeiro com epicentro na África oriental.
Já a Nigéria, o gigante africano, 8o produtor de petróleo do mundo, é dominada por três etnias. Donos do sul, os iorubas impulsionaram a volta à democracia “formal”. Era ioruba o chefe Moshood Abiola, que morreu na prisão depois de eleito presidente e nunca empossado.
Os haussa, do norte, controlam a elite militar, que manteve o poder durante 28 dos 39 anos de independência. A corrupção corre desenfreada. Os ibos tentaram, em 1966, criar sua própria república em Biafra e foram massacrados .
A África do Sul, com pretensões de elemento estabilizador, passa por transição difícil. Sua moeda afunda, o desemprego é de 33% e a violência urbana chega a níveis de guerra não declarada. Thabo Mbeki tem pesada herança: pouco mudou a estrutura de poder econômico dos brancos e o que isso significa em exclusão social para os negros. São “duas nações”, uma de brancos ricos e outra de negros pobres. Mbeki pode tornar-se outro personagem do pesadelo africano, como Museveni
Boletim Mundo Ano 8 n° 3
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