João Batista Natali
A moeda única simboliza a unidade européia e ameniza o desequilíbrio entre a Alemanha e a França, mas não suprime os Estados nacionais europeus.
No último dia de fevereiro deixaram, de uma vez por todas, de circular moedas como o marco alemão, a lira italiana, o franco francês e o florim holandês.
Doze dos países da União Européia (UE) ficaram de fora Grã-Bretanha, Suécia e Dinamarca passaram a ter o euro como moeda comum. Os países da zona do euro têm, em conjunto, 15,5% do PIB do planeta, perdendo apenas para os Estados Unidos (20,8%). Mas, em termos de comércio, somam 19,6% das exportações globais, contra 15% dos Estados Unidos e 8,8% do Japão.
A unificação monetária foi uma operação de duplo valor simbólico. Os europeus deram prova da capacidade de integrar suas economias, aproximando-se de uma meta teórica, sem data marcada, de formar uma grande confederação na qual os Estados nacionais estariam reduzidos à condição de unidades geográficas com poderes limitados. Em segundo lugar, a Europa demonstrou que, num tópico fundamental, é capaz de se exprimir com uma só “linguagem”. Ter uma mesma moeda é complicado. Significa, entre outras coisas, adotar uma política sintonizada de gastos públicos. Ninguém pode emitir ao bel prazer títulos do Tesouro para financiar programas públicos que custariam mais que o valor dos impostos previstos pelo orçamento. Há outras arestas importantes, mas vamos por partes.
A UE existe como estrutura bem antes que se pensasse na montagem de blocos econômicos como instrumento de defesa de interesses regionais. A coisa se esboçou há quase 50 anos, com a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (Ceca). Era um mecanismo que tornava disponíveis entre seus participantes reservas energéticas e siderúrgicas. França e Alemanha Ocidental, os grandes beligerantes de duas guerras, dissolviam um foco potencial de conflito compartilhando “espaços vitais”.
Veio em seguida, com o Tratado de Roma de 1957, o Mercado Comum Europeu, em que França e Alemanha Ocidental formavam o eixo de uma zona de livre comércio.
A integração proporcionada pelo MCE foi fator de estabilidade política na Europa. Nenhum nacionalista maluco defenderia ações militares contra um país rival, na medida em que esse país tornava-se parceiro comercial e sócio em investimentos de interesse mútuo.
O euro foi um produto da nova equação geopolítica criada pelo fim do bloco soviético. Até o fim dos anos 80, havia um certo equilíbrio entre os pesos econômicos da Alemanha Ocidental, França, Itália e Grã-Bretanha. A reunificação alemã desequilibrou o jogo.
Com o fim da Alemanha Oriental e a reincorporação dos territórios do leste, a hegemonia econômica alemã tornou-se indiscutível. O potencial expansivo do capitalismo alemão materializava-se na maior disponibilidade de capitais e na força do marco. O temor do poderio econômico alemão tendia a gerar tensões geopolíticas no continente. Nesse quadro, o euro permitiu a desmontagem de uma bomba-relógio: o ressurgimento da rivalidade franco-alemã. Foi em 1992 que o Tratado de Maastricht decidiu pela unificação monetária da UE. A costura diplomática teve como artífice o então presidente francês, François Mitterrand.
O Banco Central Europeu está instalado em Frankfurt, na Alemanha, não em Paris ou Milão. Quando, no primeiro dia de janeiro, as cédulas e moedinhas do euro passaram a substituir as divisas nacionais, a Alemanha teve o direito de emitir 29,85% das novas divisas. A parcela da França foi de 17,67%, e a da Itália, 16,36%. Com parcelas bem menores, seguem-se os demais parceiros. Mas a Alemanha paga o preço mais elevado. Além de abrir mão da força simbólica do marco, ela perde a possibilidade de controlar a sua política monetária. A zona do euro adota uma única taxa básica de juros, definida pela situação geral das economias do bloco. Há poucas semanas, o governo alemão levou um pito do Banco Central Europeu porque estaria criando déficit público maior que o combinado ao criar programas de combate ao desemprego.
A UE tem um único passaporte para seus cidadãos.
Tem a mesma placa de automóveis e um sistema de equivalência de diplomas que permite a mobilidade da mão-de-obra. O euro não passaria, assim, de uma cereja vistosa em cima desse bolo coberto de glacê.
Contudo, subsistem na UE sérias divisões. A Grã-Bretanha quebra a ilusão de uniformidade, não só por manter como moeda a libra esterlina, mas também por seu atrelamento diplomático aos Estados Unidos. A Itália e a Áustria, com governos de direita, tendem a bloquear a adoção de políticas comunitárias que evoquem o modelo do Estado do bem-estar social. A Europa está cega e surda diante do atual agravamento da crise entre Israel e palestinos.
São apenas alguns exemplos de omissões ou divergências que contrastam com a imagem internacional de unidade proporcionada pelo euro. Eles revelam que a unidade política e diplomática é ainda mais difícil que a unificação da moeda.
Identidade nacional é muito mais que uma moeda
A federação de bancos alemães fez uma pesquisa no ano passado para identificar as afinidades que os correntistas teriam com o euro. Boa parte respondeu que a moeda seria útil porque ninguém mais precisaria trocar dinheiro antes de viajar para a Grécia ou Espanha. A resposta não é incorreta. Mas corresponde a uma parte minúscula do potencial permitido pela inovação. Os balanços das empresas passaram a dispor de uma nova transparência, permitindo comparações com subsidiárias ou concorrentes de outros cantos da UE. O mesmo vale para os consumidores, na comparação de preços e tarifas. O euro expôs uma nudez econômica que só transparecia nas planilhas de estudiosos: a vida é mais barata e os rendimentos são menores em países da UE cujo parque industrial opera com produtos de menor valor agregado. Os portugueses são mais pobres que os alemães, mas o custo de vida é menor em Lisboa que em Berlim.
Mas, se tudo isso é muito complicado para o senso comum dos 291 milhões de europeus que adotaram a nova moeda, é inegável que o euro tende a moldar a consciência européia num novo patamar. Um exemplo. Há meses, as cartas de leitores de jornais franceses sugeriam uma regulamentação da propaganda por correio eletrônico (spam). Nenhum missivista pedia providências à France Telecom, empresa pública de telecomunicações, ou ao ministério que assegura sua tutela. Mas todos pediam que “Bruxelas faça alguma coisa”. Bruxelas, capital da Bélgica, é a sede da Comissão Européia, órgão executivo da UE.
A CE possui tantos tentáculos na vida cotidiana, que problemas estritamente nacionais tornaram-se exceções.
O cidadão europeu sabe disso. Passou também a saber que não são mais os governos de seus países que decidem sobre questões triviais como os dados que devem constar da carteira de motorista ou a presença de um colorante em determinado alimento.
Essa trans-nacionalização das normas não provocou a emergência de um nacionalismo de direita com peso eleitoral para frear o processo de integração européia. Isso porque, a rigor, a identidade nacional não corre nenhum risco. Os idiomas, a culinária, a religião ou as regras de relacionamento afetivo entre os jovens continuam codificadas por cada cultura.
Boletim Mundo Ano 10 n° 1
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