“A raça é a morte da humanidade” O racismo “científico” é um produto da modernidade, construído como base intelectual do imperialismo europeu.
O conceito “científico” de raça e o racismo a ele associado são herdeiros do processo de expansão colonialista iniciado no século XV. Claro que sempre foi mais ou menos disseminada, ao longo da história, uma noção vaga e difusa de que certos povos eram cultural e politicamente superiores a outros. São famosos os textos em que Aristóteles (384-322 a.C.) afirma que certas raças são, por natureza, livres desde o berço, ao passo que outras já nasceram escravas. Mas isso nada tem a ver com a noção moderna de raça, tomada como conceito biológico que definiria uma suposta hierarquia na escala evolutiva.
Foi com o início da colonização africana, as descobertas da América e do caminho para as Índias, através do Pacífico, que a noção moderna de raça começou a ganhar força. Graças à conveniência e à necessidade econômica de empregar o trabalho escravo de negros e aborígenes americanos, teólogos, filósofos e cientistas europeus cristãos iniciaram um debate sobre a legitimidade do sistema escravista. Assim, em 1510 o frade dominicano escocês John Major, ecoando Aristóteles, diria que “a ordem da natureza” estabelece uma hierarquia entre os homens, ao passo que o espanhol Juan Ginés de Sepúlveda afirmaria, em 1550, que “a inferioridade e a perversidade naturais do aborígene americano” atestam sua “natureza irracional”, e que “os índios são tão diferentes dos espanhóis como a maldade é da bondade e os macacos dos homens”. Já o bispo e filósofo inglês D. Hume (1711-1776) escreveu: “Estou propenso a crer que os negros são naturalmente inferiores aos brancos”.
Do “outro lado da barricada”, pensadores como o padre dominicano espanhol Bartolomeu de las Casas, uma exceção entre os teólogos de sua época, diziam que todos os povos do mundo são constituídos por homens iguais. Montaigne (1533-1592), ao falar dos aborígenes do Brasil, afirmou que “não há nada de selvagem ou bárbaro nessa nação, salvo se considera barbarismo aquilo que não é próprio de cada um”. Eles anteciparam, de certa forma, o que diriam Voltaire (1694- 1778), Rousseau (1712-1778) e Buffon (1706-1788), pensadores iluministas que defendiam a tese da unidade da essência da natureza humana. Essa unidade, sintetizada na famosa frase penso, logo existo , inspirou o lema e a utopia sustentados pela Revolução Francesa de 1789: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
O racismo “científico
O racismo começou a ganhar o estatuto de “verdade” com a teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882), segundo a qual sobreviveriam as espécies mais capazes de se adaptar ao meio. Os princípios formulados por Darwin, puramente biológicos, tentavam explicar o mundo natural. Eles foram depois utilizados de forma abusiva pelos pensadores interessados em defender a escravidão como conseqüência lógica da evolução das raças. Herbert Spencer (1820- 1903) aplicou o princípio da “sobrevivência do mais capaz” ao estudo das sociedades humanas, dando aparência de seriedade científica ao que depois se qualificaria como darwinismo social.
Assim, as potências colonizadoras chegaram ao final do século XIX devidamente armadas com um conjunto de “teorias científicas” supostamente irrefutáveis que lhes permitiriam iniciar uma nova fase de expansão imperialista, com a divisão do mercado mundial entre as principais potências da época.
Foi emblemática, nesse sentido, a Conferência de Berlim de 1885, quando a África foi repartida entre as potências coloniais européias, sem que fosse dada a mínima atenção às realidades geográficas, culturais, religiosas e sociais de seus povos.
A noção eurocêntrica de superioridade da “raça branca” estava tão profundamente arraigada que mesmo pensadores revolucionários como Karl Marx e Friedrich Engels flertaram com ela. Em 1849, Engels elogiou a conquista do Oeste pelo “espírito empreendedor” do colonizador americano, incluindo o fato de que “a maravilhosa Califórnia tenha sido arrancada dos preguiçosos mexicanos, que nada sabiam fazer com ela”. Em 1853, Marx saudou o “progresso” levado pelo colonialismo inglês à “atrasada” Índia.
O movimento sionista, que surgiu no final do século XIX, fornece outro exemplo do alcance do eurocentrismo. O seu lema era: “uma terra sem povo (a Palestina) para um povo sem terra (os judeus)”. Ora, os árabes palestinos viviam na Palestina desde antes de Cristo. Como, então, se podia seriamente afirmar que se tratava de uma “terra sem povo?” Uma vez que os árabes palestinos não compartilhavam os mesmos valores culturais e religiosos dos europeus, eram vistos como um vazio cultural que deveria ser ocupado pela “civilização”.
A noção antiga e difusa de hierarquias culturais passou a coexistir e foi reforçada no final do século XIX, com a construção do conceito “científico” de hierarquias raciais.
Assim, se o racionalismo, as conquistas científicas e os princípios humanistas da Revolução Francesa de 1789 foram pilares sobre os quais se construiu a modernidade, também o oposto é verdadeiro: o preconceito cultural e o racismo foram construídos e exacerbados pelo processo de expansão econômica do capitalismo. As duas tendências coexistem e lutam permanentemente entre si.
Daí não ser absolutamente estranho que, no século XX, o racismo e o preconceito isto é, o desprezo aos povos e às culturas “diferentes” tenham se transformado em instrumentos políticos. Isso foi apenas um resultado lógico de uma tendência que faz parte da história da humanidade e cujo pano de fundo sempre foram as motivações econômicas e geopolíticas.
Hitler e o ódio racial
Hitler não inventou o ódio aos judeus, mas o exacerbou até o extremo, motivado por interesses políticos. Utilizando os meios tecnológicos colocados à sua disposição incluindo o rádio e o cinema Hitler deu forma definida a um sentimento difuso na sociedade alemã, que identificava nos judeus um povo “diferente”, responsabilizando-os pela humilhação imposta à Alemanha com o Tratado de Versalhes, que encerrou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e pelo caos social que afligia o país nos anos 20. Ele estimulou e utilizou o ódio irracional aos judeus para construir sua própria máquina mortífera, que conduziria o mundo ao desastre da Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto.
Se as crescentes conquistas científicas não são suficientes para liquidar o racismo, isso se deve à circunstância de que o racismo nada tem a ver com a ciência. Trata-se de um sentimento irracional, política e economicamente motivado. É isso que explica o fato de que em plena era da decodificação do genoma, croatas, muçulmanos e sérvios continuem se matando nos Bálcãs; hutus e tutsis se aniquilem na África oriental; os Estados Unidos e as potências européias olhem para o resto do mundo como um corpo caótico de nações “subalternas”.
O conceito de raça e o preconceito cultural mexem com aquilo que existe de mais obscuro, primitivo e anti-social no ser humano. É por isso que alimentar o racismo, sob qualquer forma, é um dos gestos mais repugnantes e criminosos que se possa conceber. Ou, como disse a pensadora política alemã Hannah Arendt, “não importa o que possam dizer os mais eruditos cientistas, raça é, politicamente, não o começo da humanidade, mas o seu fim, não a origem dos povos, mas sua decadência, não o berço natural dos homens, mas sua morte artificial”.
O “trato dos viventes”, na origem do Brasil
“Sem Angola, não há Brasil”. Essa frase resume a importante obra do historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro, em livro que está sendo lançado justamente no ano das celebrações dos 500 anos: O trato dos viventes (Ed. Companhia das Letras).
A realidade histórica é que, entre os séculos XVI e XVIII, havia um vigoroso mercado de escravos que funcionava como uma espécie de engrenagem mercantil do sistema colonial português. É importante prestar atenção a essa questão: enxergar nela muito mais que um preciosismo de historiador. Afinal, é comum em nossos livros de história imaginar que o Brasil era uma entidade política definida e que os escravos negros eram “importados”. De modo sutil, essa visão da história colonial reforça um dos fundamentos da visão racista, que é colocar o subordinado, o escravizado, como integrante de uma outra realidade, externa.
Ao pensar um “Brasil” que “importa” escravos, corre-se o risco de imaginar um país branco que acomoda uma população estrangeira negra. Alencastro insiste na existência de um sistema colonial em que é impossível pensar o Brasil sem Angola, em que é historicamente inviável imaginar um país de brancos que existe antes e acima dos negros. Angola adquiriu importância econômica quando se tornou a maior fonte de escravos do império português. O Brasil só se tornou relevante para Portugal quando seus engenhos de açúcar começaram a funcionar com mão-de-obra africana. No centro de tudo, o tráfico negreiro (na expressão da época, o “trato dos viventes”).
Boletim Mundo Ano 8 n° 5
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