sábado, 5 de março de 2011

O HINO, A BANDEIRA... E O CENSO

Demétrio Magnoli
Definida como um todo, a população é uma coleção de seres humanos. Ela é um conjunto finito e, portanto, num dado momento, “recenseável”. Esse ponto é bastante significativo porque, se a população pode ser contada, implica que dela podemos ter uma imagem relativamente precisa.
Ainda que essa imagem, um número, não possa ser (como não é) estável, pois se modifica o tempo todo. Contudo, é por esse número que a organização que realizou o recenseamento dispõe de uma representação da população. Sem dúvida é uma representação abstrata e resumida, mas já satisfatória para permitir uma intervenção que busca a eficácia. O recenseamento permite conhecer a extensão de um recurso (que implica também um custo), no caso a população. Nessa relação que é o recenseamento, por meio da imagem do número, o Estado ou qualquer tipo de organização procura aumentar sua informação sobre um grupo e, por conseqüência, seu domínio sobre ele. (Claude Raffestin, Por uma geografia do poder, São Paulo, Ática, 1993, p. 67).
Desde a Antigüidade, há censos.
Contudo, eram avaliações indiretas ou contagens parciais da população, realizadas esporadicamente. No seu formato atual, como prática rigorosa que se repete periodicamente, o censo surgiu junto com o Estado- Nação contemporâneo.
O primeiro recenseamento moderno foi  feito na Suécia, entre 1749 e 1750. Os ingleses inauguraram a prática em 1801, ano em que a Irlanda foi incorporada e constituiu-se a Grã-Bretanha. Na Itália também coincidiu com o passo decisivo para a unificação nacional, em 1861.
Ficção política
O nacionalismo ampara-se na crença de que as nações são “tão antigas quanto a história”, para usar a frase célebre de Walter Bagehot. Mas as nações são construções históricas recentes e, como explicou o historiador Eric Hobsbawm, são frutos da árvore do nacionalismo. Antes de ser uma informação crucial para o exercício do poder, o recenseamento funcionou como instrumento da vasta operação política e ideológica de “invenção da nação”.
A “invenção da nação” opera, antes de tudo, por uma separação entre os “nacionais” e os “estrangeiros”. Essas noções exigiam critérios de identificação novos – era preciso substituir as identidades tradicionais, baseadas na região de origem ou no clã, pela idéia abstrata da pátria contemporânea.
Os censos fizeram isso, produzindo as etnias e um sistema étnico de classificação da população.
Os Estados europeus não se contentaram em produzir etnias na Europa, mas disseminaram-nas pelas colônias asiáticas e africanas. Os censos coloniais na Malásia britânica eliminaram, ao longo do tempo, as categorias classificatórias originais e as substituíram por categorias étnicas.
O censo de 1881 dividia os europeus em “residentes”, “flutuantes” e “prisioneiros”.
Mas em 1911 todos eles já estavam agrupados como “brancos”. As categorias baseadas em identidades religiosas evaporaram depois do censo de 1871, para dar lugar a identidades etno-nacionais: “Malaios”, “Chineses”, “Indianos” e “Outros”. Na época, essas categorias não seriam entendidas pela esmagadora maioria da população da colônia.
Pelas mãos “recenseadoras” do colonizador, estava nascendo uma “nação malaia” e, com ela, as sementes da hostilidade atual entre a maioria “malaia” e a minoria “chinesa” da população da Malásia.
No Líbano, um recenseamento tornou-se a pedra fundamental de todo o Estado, impossibilitando a realização de qualquer censo posterior. A independência do país, em 1943, só foi possível através de um “pacto nacional” entre os líderes das diversas comunidades religiosas. As funções políticas e a representação parlamentar foram repartidas entre as comunidades, segundo uma proporcionalidade definida pelo censo de 1932. A presidência e inúmeros altos cargos ficaram com os cristãos maronitas, que eram 32% da população.
Com o tempo, o crescimento vegetativo mais rápido dos muçulmanos modificou a proporção das comunidades religiosas na população, mas os líderes cristãos bloquearam a realização de novos censos para congelar o sistema de poder estabelecido em 1943. A exigência dos muçulmanos, de revisão do “pacto nacional”, e a intransigência dos cristãos acenderam a fagulha da guerra civil, que começou em 1975, arrastou-se por quinze anos e destruiu o país.
O censo é uma fonte inesgotável de fantasias geopolíticas. A divisão do Brasil nas cinco macrorregiões do IBGE pouco esclarece sobre o país. Os estudos sobre a dinâmica geográfica e econômica utilizam um conceito diferente – o de complexos regionais. As políticas de desenvolvimento regional baseiam-se nas regiões de planejamento, como a Amazônia Legal e o “Nordeste da Sudene” . As macrorregiões do IBGE servem, essencialmente, como critério de organização das estatísticas censitárias. Mas essa divisão, de tão reproduzida em livros escolares, na imprensa e em publicações oficiais, ganhou vida própria. Os líderes políticos espertos sabem disso e, em causa própria, empunham as bandeiras da defesa dos “interesses do Nordeste” (ou do “Sul”, do “Norte”, etc.), como se tais coisas existissem.
Boletim Mundo Ano 8 n° 6

Nenhum comentário:

Postar um comentário