sábado, 5 de março de 2011

O PODER MILITAR AINDA RONDA A AMÉRICA LATINA

Generais avalizam fraude no Peru, resistem à democracia no Chile e protagonizam a guerra civil colombiana. O populismo militar projeta-se da Venezuela para o Equador.
O ditador é a única figura mítica da América Latina, disse o escritor Gabriel García Márquez, e essa figura é associada a militares, cruéis e cheios de penduricalhos, como o antigo Trujillo (República Dominicana), ou simplesmente cruéis, como Pinochet (Chile). “Voltamos à normalidade”, registrou certa vez um historiador peruano, diante de mais um general invadindo o palácio com tropas e tanques.
Na Argentina, durante mais de meio século, a partir do golpe de 1930, nenhum presidente civil conseguiu terminar seu mandato. Os ex-presidentes Alfonsín e Menem ainda enfrentaram sublevações. “Os militares deixaram de ser fator de poder na sociedade argentina, aceitaram drásticos cortes orçamentários e se subordinaram ao poder civil de modo não acontecido em nenhum outro país do continente”, garante o sociólogo Rosendo Fraga.
Existe até um herói nessa história, o general Martín Balza, que durante oito anos comandou o Exército argentino.
Num discurso transmitido pela tevê, em 1995, afirmou que “os fins nunca justificam os meios” e que o terrorismo, “por mais vandálico que seja, deve ser combatido com a força da ordem jurídica”. Os militares “só devem obedecer a ordens legítimas partidas de autoridades legítimas” e “quem cumpre ordens imorais incorre em má conduta”. Balza mandou que se reduzissem a 15% os estudos militares em escolas militares, cujos currículos se impregnaram de economia, administração de empresas, etc. A disposição é de acabar com um “fascismo fortemente arraigado”, nas palavras do próprio Balza.
Seria emblemático? Não parece.
Questão que parecia abafada, sob o peso da incapacidade de ditaduras passadas em domar as pressões sociais e administrar países ingressando na economia global, volta a ser tema da mídia e de estudiosos.
Mariano Aguirre, do Centro de Investigações para a Paz, de Madrid, avisa que os militares latino-americanos continuam presentes, mas com outras roupagens.
Richard Millet, autor de Depois do pretorianismo, nega a existência de “verdadeiro controle civil”. Os ministros da Defesa civil “não dão ordens aos generais; fazem consultas e negociam com eles”. Em artigo publicado no Le Monde Diplomatique, Mariano lembra que, no Peru, os militares são parceiros do presidente Fujimori. Isto ficou bastante claro, mais uma vez, com a cerimônia “sem precedentes” de reconhecimento formal do terceiro mandato de Fujimori por parte dos comandantes das Forças Armadas. O aviso de que “é o nosso chefe supremo” equivaleu a uma sentença dos quartéis, de que o processo eleitoral, embora viciado e fraudulento, estava encerrado.
As eleições continuavam sendo questionadas e o presidente, em seu continuísmo com forragem militar, só prestaria juramento no Congresso a 28 de julho, mais de um mês depois de seu “reconhecimento” na sede do Comando Militar Central. “Trata-se de ato de provocação próximo do delito, já que a cúpula militar não pode ser deliberante”, fulminou o analista político Fernando Rospigliosi .
Na Colômbia, Equador, Guatemala
e Chile, os militares controlam partes de setores estratégicos da economia. Um dos maiores bancos da Guatemala é administrado pelos militares. Na Colômbia, o Judiciário se queixa da impossibilidade de julgar militares acusados de violações dos direitos humanos.
Em áreas de guerra, em amplas partes do interior, prevalece a “lei militar”.
No Chile, onde participaram ativamente da abertura econômica e se constituíram em Estado dentro do Estado, os militares ficam com 10% das exportações de cobre e, no Equador, com 15% das exportações de petróleo. Com a volta de Pinochet ao Chile, e os mais de cem processos contra o ex-ditador, a questão militar reacendeu-se a um ponto de quase incandescência. Em comunicado agressivo, as Forças Armadas “lembraram” que são “guardiãs da ordem constitucional”.
Acontece que Pinochet, antes de devolver o poder aos civis, montou uma “constitucionalidade” destinada a tornar intocáveis as Forças Armadas e a si próprio, protegido atrás da imunidade de senador vitalício.
Ordem unida
É essa ordem que interessa aos militares chilenos. Cassar a imunidade de Pinochet, por exemplo, seria violá-la. Por mais que o novo presidente, Ricardo Lagos, se esforce por mostrar que quem manda é ele, pesquisa do Centro de Estudios de la Realidad constatou que só 22% dos chilenos consideram os militares “plenamente obedientes”.
Há impressões digitais de generais em todos os acontecimentos políticos recentes do Paraguai e, no Equador, o golpismo voltou a andar solto. A Venezuela foi um dos dois únicos países sul-americanos, ao lado da Colômbia, a não sofrer golpes durante os embates da Guerra Fria. O coronel Chávez, quando irrompeu em 1992 liderando tentativa de golpe, não carregava heranças dos “anos de chumbo”, de ditaduras sangrentas, sobretudo da década de 70. Era produto de ímpeto populista contrário à globalização, aos ajustes estruturais negociados com o FMI, à velha política, à corrupção e ao neoliberalismo. Com essas bandeiras, Chávez derrotou nas urnas os grupos tradicionais e partiu para refazer o arcabouço político do país.
Seriam componentes da “redefinição de papéis” dos militares latino-americanos?
Há dissidências, mas o “chavismo” continua de pé. A sombra de Chávez se projeta no Equador, onde coronéis se juntaram a índios e camponeses rebelados.
Tudo isso coloca em questão o futuro da democracia no continente, tema de primeira linha da cúpula sul americana convocada pelo Brasil. Quanto vale a “cláusula democrática” do Mercosul? Basta que não haja golpe militar para que exista democracia? Eleições, mesmo que fraudulentas, são suficientes?
A questão peruana se coloca no centro da discussão. Mas as “anomalias” não se limitam a ela.
Terrorismo sem terroristas
Desde maio de 1980, quando o grupo terrorista de extrema-esquerda Sendero Luminoso realizou sua primeira ação no Departamento (Estado) de Ayacucho, sua guerra contra as forças oficiais deixou 25 mil mortos e 15 mil desaparecidos. Mais de 600 mil pessoas perderam suas casas, migrando principalmente para as já inchadas favelas de Lima, a capital.
O chefe supremo do Sendero, Abimael Guzmán, foi preso em 1992 e seu grupo quase desapareceu, assim como outra facção guerrilheira, o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA). Mesmo assim, a pacificação do país tornou-se um instrumento de propaganda política e a oposição (legal) a Fujimori viu-se transformada em alvo de todas as acusações.
Três dias antes da realização do segundo turno eleitoral, apareceram em Ayacucho – berço do hoje neutralizado Sendero Luminoso panfletos apócrifos, com uma fotomontagem do candidato de oposição, Alejandro Toledo, rosto escondido por um lenço e usando uma boina com a sigla do MRTA. “Violência, assassinatos, guerra, mortes. Votar em Toledo é votar no terrorismo”, diziam os panfletos. Jornais populares, mantidos graças às verbas do governo e conhecidos como chichas, repetiram esse mote ao longo de toda a campanha eleitoral. “Abimael Guzmán cultuava a violência. O perdedor [Toledo], também. Os dois são iguais”, dizia o jornal La Yuca, de Lima, no dia 25 de maio.
Nos últimos cinco anos, o governo peruano investiu cerca de US$ 300 milhões na reinstalação de 6.500 famílias de camponeses expulsos pela guerra, dos departamentos de Apurimac, Ayacucho, Huancavelica e Junín. Também foram realizadas melhorias nas redes de saneamento básico, água e nas escolas dessas regiões. A recompensa veio nas urnas. Fujimori obteve alguns de seus resultados mais expressivos exatamente nas áreas em que o terrorismo do Sendero Luminoso era mais ativo .
Boletim Mundo Ano 8 n° 4

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